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Um par de cornos

Moisés. Sillería de coro de la catedral de San Salvador de  Oviedo. Obra realizada entre 1491 y 1497.

Moisés. Sillería de coro de la catedral de San Salvador de Oviedo. Obra realizada entre 1491 y 1497.

Muitas pessoas contemplaram, presencialmente ou não, o Moisés de Michelangelo. Poucas repararam nos cornos. As duas protuberâncias não são artifício de penteado, são, ineludivelmente, dois cornos. Este tipo de “cegueira” remete para a teoria da dissonância cognitiva de Leon Festinger. Quando visitamos a basílica de San Pietro in Vincoli, em Roma, aspiramos à perfeição da arte e da religião, não a um par de cornos ao jeito de Pan ou de Lucífer. E, no entanto, eles lá estão.

Michelangelo. Moisés. 1513-1515. Pormenor.

Michelangelo. Moisés. 1513-1515. Pormenor.

O Moisés de Michelangelo não é um caso isolado (ver galeria de imagens). Na Idade Média, mas também nos séculos seguintes, muitas obras representam o profeta com cornos. Dizem os entendidos que esta anomalia decorre de um erro de São Jerónimo (347-420) na tradução da Bíblia do hebreu para o latim:

 Statue of Moses c.1150-1200, St. Mary's Abbey, now in the Yorkshire Museum. Detail.

Statue of Moses c.1150-1200, St. Mary’s Abbey, now in the Yorkshire Museum. Detail.

“Ao traduzir uma passagem do Êxodo que descreve o semblante do profeta Moisés, São Jerônimo escreveu em latim: cornuta esse facies sua, ou seja, “sua face tinha chifres”. Esse detalhe esquisito foi levado a sério por artistas como Michelangelo – sua famosa escultura representando Moisés, hoje exposta no Vaticano, está ornada com dois belos corninhos. Tudo porque Jerônimo tropeçou na palavra hebraica karan, que pode significar tanto “chifre” quanto “raio de luz”. A tradução correta está na Septuaginta: o profeta tinha o rosto iluminado, e não chifrudo. Apesar de erros como esse, a Vulgata reinou absoluta ao longo da Idade Média – durante séculos, não houve outras traduções.
30.E, tendo-o visto Aarão e todos os israelitas, notaram que a pele de seu rosto se tornara brilhante e não ousaram aproximar-se dele. Ex 34:30.” (“Chifres de Moisés”. Blogue Parafraseando a Verdade: http://parafraseandoaverdade.wordpress.com/2011/06/30/moises-do-antigo-testamento-com-chifres/.”

Arbusto flamejante. Huntingfield Psalter. 1210-1220.

Arbusto flamejante. Huntingfield Psalter. 1210-1220.

Custa-me a acreditar que um erro de tradução de uma palavra fosse suficiente para coroar, durante séculos, o profeta dos profetas com um brilhante par de cornos. A imagem vingou porque se enxertou no imaginário da época, nas crenças e nos sentimentos das pessoas. Fazia sentido.

Moisés recebe as tábuas da lei. Ms. Rouen, BM 0.4. Séc. XIV.

Moisés recebe as tábuas da lei. Ms. Rouen, BM 0.4. Séc. XIV.

Os cornos significam, em várias culturas, potência. No caso de Moisés, a força de Deus. Não é por acaso que os guerreiros celtas e vikings colocavam cornos nos capacetes. Dei, há semanas, uma aula sobre a relação entre o poder e a arte, incluindo as moedas. Começámos pelo início: Dario I, o imperador da Pérsia, cunhou moedas com o logotipo do arqueiro, o seu símbolo; Alexandre o Grande faz circular moedas com o seu perfil. Acontece que Alexandre o Grande é retratado nas moedas com cornos na cabeça! (Figura).

Moeda de Alexandre o Grande

Moeda de Alexandre o Grande

Não há símbolos unívocos. Os cornos remetem para a potência, para a virilidade, mas também para o oposto:

“C. G. Jung encara uma outra ambivalência no simbolismo dos cornos: representam um princípio ativo e masculino, pela sua forma e pela sua força de penetração; um princípio passivo e feminino, pela sua abertura em forma de lira e de recetáculo. Reunindo estes dois princípios na formação da personalidade, o ser humano, assumindo-se integralmente, atinge a maturidade, o equilíbrio, a harmonia interior” (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire de Symboles, Paris, Robert Laffont, 1982, p. 290).

Palavras que lembram Gilbert Durand.