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Vilarinho da Furna: Imagens de uma morte adormecida (revisto em 07.08.2022)

Em 2010, decorreu no Museu da Imagem, em Braga, uma exposição dedicada a Vilarinho da Furna, aldeia submersa, em 1972, pela construção de uma barragem. As fotografias são da autoria do Grupo IF (Ideia e Forma, composto por António Drumond, Henrique Araújo, João Paulo Sotto Mayor e Manuel Magalhães). Partilhei com Álvaro Domingues a organização de uma conferência nas vésperas do encerramento da exposição. Chamou-se “Vilarinho da Furna – Arqueologia do Progresso” e teve lugar no dia 9 de Julho de 2010.

O texto que segue corresponde à comunicação que então apresentei. É precedido por uma galeria de fotografias de Vilarinho da Furna colhidas pelo grupo IF aquando da descida das águas, nomeadamente  em 1976.

VILARINHO DA FURNA: IMAGENS DE UMA MORTE ADORMECIDA

A memória da aldeia de Vilarinho da Furna ainda é fresca. Da povoação de outrora sobram as ruínas fotografadas pelo Grupo IF. Memória e fotografias, ambas inspiram uma palavra: espectralidade.

O que significam as ruínas? Os dicionários de símbolos remetem, com algum desencontro, por um lado, para a remanescência, o lastro no tempo, e, por outro lado, para o efémero e a precariedade, para a finitude das obras humanas. O que não é suficiente. No nosso imaginário, as ruínas desfrutam de uma aura. Não são meros objetos. São percorridas por uma vitalidade. Se permanecem inertes, se parecem mortas, é de uma morte adormecida, de uma morte que a qualquer momento pode acordar e adquirir vida. As ruínas são lugares onde mora a potência. Tal como os vulcões inactivos, são promessas do extraordinário. Pelo menos, no nosso sentimento e no nosso pensamento.

Atente-se na saga do Indiana Jones: os momentos clímax ocorrem quase todos em cenários de ruínas. Na parte final do último episódio, as ruínas animam-se numa apoteose fantástica. No filme Ruínas, de 2008, estas perseguem violentamente um grupo de jovens. O Exorcista tem o seu início e a sua chave nas escavações de umas ruínas no Iraque. Mudando de género, Uncharted, um dos videojogos clássicos mais bem cotados de sempre, culmina num cenário de ruínas. O recente Demon Souls, também altamente cotado (9,4), evolui quase sempre num mundo em ruínas. E nas lendas, as ruínas são o local de convergência de bruxas e demónios.

Em suma, primeiro apontamento: as ruínas têm aura, são espectrais.

As ruínas de Vilarinho da Furna não são umas ruínas quaisquer. Para além de alagadas, vivem desassossegadas. Pertencem a vários mundos ao mesmo tempo e a nenhum em particular. Pertencem ao Portugal Profundo. Pertencem também ao Portugal afundado. São vestígios do Portugal Profundo afundado. Pertencem ainda ao nosso mundo que não é profundo nem afundado. Divididas entre mundos, sem lugar nem destino definidos, as ruínas encontram-se num limiar, vagueiam numa espécie de limbo. Por isso mesmo, assombram-nos com as suas aparições, demandando penitência e reparação. Nas palavras de uma série de televisão recente, ainda não encontraram a luz. Fazem lembrar almas penadas. Reinsistindo, são espectrais.

Em suma, dois apontamentos: um, as ruínas de Vilarinho da Furna estão num limbo, fazem uma travessia; dois, nós, os electrificados, ainda não lhes conseguimos fazer o luto. Andamos assombrados e incomodados. Ao nível do imaginário, claro, sempre ao nível do imaginário. Ocorre-nos o Angelus Novus, de Paul Klee, tal como o interpretou Walter Benjamin (Teses sobre o conceito da história, 1940, tese 9). Um anjo, inexoravelmente arrastado para a frente pelos ventos do progresso, mantém o rosto voltado para trás. E o que é que vê? Um amontoar de ruínas. Todos nós temos um pouco de Angelus Novus

Por estranho que pareça, estes apontamentos, estes maneirismos, vêm a propósito da exposição de fotografias do Grupo IF. Não sou especialista em fotografia, por isso vou falar pouco para não errar muito. Sobretudo estando presentes os autores.

As fotografias, a maioria a preto e branco, apresentam um granulado muito fino que tende a esbater ou amaciar os limites. A luz joga frequentemente com os claros e escuros, de um modo que lembra Caravaggio. Existe alguma picturalidade, no sentido de Heinrich Wolfflin (Renascença e barroco, São Paulo, Perspectiva, 2010), nestas fotografias: não há linhas vincadas, nem centralidades. Parafraseando Blaise Pascal (Pensamentos, Artigo XVII – Conhecimento geral do homem), não temos ponto nem linha onde nos firmar, logo onde nos focar. Indeciso, o olhar perturba-se e inquieta-se. Faz, também ele, a sua travessia. O nosso olhar não encontra paz, nem descanso. Uma após outra, as fotografias aparecem-nos, interpelam-nos e inquietam-nos.

O nosso olhar faz a sua travessia, mas não uma travessia qualquer. É uma travessia balizada pelas câmaras fotográficas, pelo olhar do fotógrafo. Muitas fotografias mostram fragmentos de ruínas. Mas, na realidade, o que nos é dado ver são detalhes de fragmentos ou, mais precisamente, detalhes de uma totalidade fragmentada. Os fragmentos não têm origem no fotógrafo, não foi ele quem os fez (afiançam que foi consequência do progresso…). Mas os detalhes desses fragmentos, esses são, inequivocamente, obra do fotógrafo. Foi ele quem os talhou, quem os recortou. Quem percorre as fotografias com detalhes de fragmentos faz caminho. Deambula, com os pés no lodo ou na calçada, pela aldeia. O mapa pertence, contudo, à câmara fotográfica que vai esboçando um labirinto de imagens esfíngicas. Estas fotografias lembram, de algum modo, os filmes de Tarkovski, tais como Espelho (1975) ou Nostalgia (1983).

Estas duas características, a picturalidade e o enfoque no detalhe de fragmentos já justificam o reconhecimento de uma certa espectralidade às fotografias da exposição sobre Vilarinho da Furna. Mas há, pelo menos, um outro aspecto que concorre para esse efeito espectral.

Está na moda construir impossíveis verosímeis, mais ou menos ao jeito de M. C. Escher. Trata-se de realizar irrealidades. De as tornar, por assim dizer, sensíveis, palpáveis. Esta exposição propõe-nos, por vezes, o contrário: irrealizar realidades. O real parece sofrer algum encantamento. Irrealiza-se, torna-se-nos estranho ou fabuloso, numa espécie de dança macabra de impressões ao som da música de Saint-Saëns (Danse macabre, 1874). Estou a pensar em várias fotografias e em especial numa a cores, em que o jogo dos reflexos nos estremece os sentidos e nos deixa confundidos.

Irrealizar é também uma forma de espectralidade. Até este breve mas sinuoso cortejo de palavras não se cansou, sobressaltado, de desafiar a razão.