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Confidências de um guarda-chuva solitário

Pendurado na cancela. Fotografia de João Gigante. Livro Pedra e Pele. 2018.

O meu dono deixou-me pendurado nesta cancela metálica. Deixou-me a falar com os meus botões. Um guarda-chuva não fala? Se assim o diz, mas, na verdade, não pode não comunicar, como os humanos de Erving Goffman. O meu dono deixou-me aqui sozinho e pendurado. Pareço um marco ou um padrão: este território tem dono e o dono anda por perto. Sinais de guarda-chuva! Quem passa olha para mim e inteira-se: o Tio Zé anda nos campos. Se não houvesse outras possibilidades, a minha capacidade de comunicar seria questionável. Mas quando há alternativas, a vontade e o sentido intrometem-se. O meu dono possui dezenas de sítios para me colocar. Por exemplo, dentro da propriedade. Mas coloca-me logo à entrada. De outro modo, os transeuntes não saberiam que o Tio Zé está no campo. Para me consolar, sonho que sou um guarda imperial na fronteira de um “reino maravilhoso” (Miguel Torga).

Disse que lembro um marco. Nestes tempos de satelização, assemelho-me também a um ponto de GPS. Na minha aldeia, passa-se a palavra. Uma pessoa pode não estar comigo e saber onde estou. O Tio Zé? O Tio Zé está no campo, deixou o guarda-chuva à entrada.

Pendurado nesta cancela, aguardo a hora da missa. Se chover, vamos em cortejo. Os guarda-chuvas e os donos (ver A Sociedade dos guarda-chuvas). Abrem-se as varetas como os anjos abrem as asas. Discursos e sinais à parte, a nossa missão não é falar, é molhar-nos pelos outros.

Os guarda-chuvas apreciam a música e a dança. Quem não se lembra de Singin’ in the rain (1952)? Entre a cancela e a igreja, apetece ouvir a canção Le Parapluie (original de Georges Brassens, 1952) na versão de Yann Tiersen & Natacha Regnier (2001), com fotografias de Robert Doisneau.

Yann Tiersen & Natacha Regnier. Le Parapluie. 2001.

A sociedade dos guarda-chuvas

À porta da igreja de Parada do Monte. Fotografia de João Gigante. Livro Pedra e Pele. 2018.

Com Álvaro Domingues (coordenador), João Gigante e Daniel Maciel, participo, desde 2017, numa investigação sobre a freguesia de Parada do Monte, em Melgaço. Inventariaram-se documentos, nomeadamente imagens, organizou-se uma exposição (Somos os que aqui estamos – em trânsito), e publicaram-se vários textos. Acresce o livro de fotografias de João Gigante, Pedra e Pele, editado no verão passado (2018). Está ainda na forja um livro global. Este ano, abordamos uma outra freguesia de Melgaço: Prado.

Os objectos falam, diria Edward T. Hall (A Linguagem Silenciosa, 1959; e a Dimensão Oculta, 1966). Mas importa entendê-los. Os objectos são, provavelmente, os melhores analisadores da vida social. Prenhes de sentido, interpelam-nos sem nos atordoar com palavras. São estuários de sentido. Por estranho que seja escutar o silêncio dos objectos, há momentos em que não temos outra solução senão dialogar com eles. Por exemplo quando participei na exposição Vertigens do Barroco, no Mosteiro de Tibães, em 2007, e na criação de um espaço museológico (Espaço Memória e Fronteira, em 2007, em Melgaço). Os objectos falam, calados. É verdade que somos nós quem fala. Nos livros de Álvaro Domingues, os objectos não desdenham posar e confidenciar uma nuvem de discursos esfíngicos.

À porta da igreja, num bengaleiro com varões metálicos cravados no granito, os guarda-chuvas esperam, quietos e mudos, os donos. Tanta gente vê e ninguém presta atenção. São guarda-chuvas e toda a gente sabe que um guarda-chuva é um guarda-chuva. Mas o João Gigante tirou-lhes um retrato. Fotografar é transubstanciar. Os guarda-chuvas já não tremem com o vento mas ganham uma nova vida e cativam novos olhares. As notas numa pauta proporcionam música, os guarda-chuvas numa fotografia proporcionam interrogações e pistas. A disposição dos guarda-chuvas no bengaleiro depende da decisão dos donos. Penduro-o aqui ou ali? Ou não o penduro? Uma sociedade comporta pessoas que se avizinham e compactam configurando grupos e massas. Os guarda-chuvas também se encostam uns aos outros (ver o segundo varão à direita). Outros distanciam-se. Em pequenos grupo (primeiro varão à esquerda) ou individualmente (segundo varão à esquerda e, destacado, no terceiro varão. Uns estão pendurados, outros enfiados. Dois guarda-chuvas dispensam o bengaleiro, encostando-se à porta da igreja. João Gigante tem destes encantamentos: transforma um conjunto de guarda-chuvas numa alegoria da diferenciação social.

Guarda-chuva

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Magritte. Les Vacances de Hegel. 1958.

Magritte. Les Vacances de Hegel. 1958.

O guarda-chuva não é um objecto qualquer. Consagrado por René Magritte, o guarda-chuva é bom para a imagem e para o imaginário: protege-nos dos céus.

Muitos anúncios recorrem à figura do guarda-chuva, nomeadamente no âmbito de coreografias. É o caso deste novo anúncio da Yoplait.

Tanto guarda-chuva e nenhum preto! Black is the color of my true love’s hair.

 

Marca: Yoplait. Título: Umbrellas. Agência:  Saatchi & Saatchi New York. Direção: Eli Sverdlov. EUA, Setembro 2012.