A manipulação como profissão
Gosto de Marshall McLuhan. Rasga caminhos com rara generosidade. As ideias saltam por entre as páginas. Ler McLuhan é uma festa, senão uma orgia, do espírito. Tamanha inquietação não está, contudo, na moda. Para os génios actuais, uma ideia não cabe num livro. Talvez em dois ou três. O leitor é massajado até não sentir o cérebro. Não se explora, explana-se. O argumento alonga-se e a criatividade adormece. Abraçamos o pensamento, ou ele nos abraça, mas não o fecundamos. Entramos na era do ovo cozido. Ninguém me dissuade que uma ideia que se arrasta até ao infinito não dá um nó na alma.
The Mechanical Bride, o primeiro livro de Marshall McLuhan (1951), é uma compilação de sessenta crónicas. Aborda tópicos respeitantes à “cultura de massas” e à “cultura popular”: iconografia, publicidade, revistas de moda, banda desenhada… Um a um, os fragmentos juntam-se num caldo inspirador, prenúncio de algumas das descobertas mais marcantes do século XX. A fragmentação criativa não é apanágio de Marshall McLuhan. Acodem-me Blaise Pascal (Pensamentos, 1670), Georgy Lukacs (A Alma e as Formas, 1910), Rolland Barthes (Mythologies, 1957) e Umberto Eco (Viagem na Irrealidade Quotidiana, 1983).
Habituamo-nos a voar alto, com ambição e desenvoltura. Não esqueçamos, porém, as asas que nos sustentam:
“Ours is the first age in which many thousands of the best-trained individual minds have made it a full-time business to get inside the collective public mind. To get inside in order to manipulate, exploit, control is the object now (Marshall McLuhan, The Mechanical Bride, Prefácio).
Segue o pdf da crónica que dá o título ao livro “The Mechanical Bride”:
Marshall McLuhan. The Mechanical Bride, in The Mechanical Bride. Folklore of Industrial Man. 1951.
Cosméticos
Não basta “encher os olhos”, importa regalá-los. E desintelectualizar. Este anúncio da L’Oréal, dirigido por Bruno Aveillan, lembra outro mais antigo da OPI (2012). Ambos franceses, a marcas de cosméticos, centrados na cor, cada um com o seu esquema de sedução: a fragmentação sensual e um repto de dança a um cavalo, “animal das trevas e do poder mágico”, símbolo “da impetuosidade do desejo” (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Robbert Laffont/Jupiter, 1982, p. 223).
Marca: L’Oréal. Título: Color Rich. Agência: McCann. Direcção: Bruno Aveillan. França, Março 2015. Música original: Raphaël Ibanez de Garayo.
Marca: OPI. Título: Instinct of Color. Agência: DAN Paris. Direcção: Hans Emanuel. França, Outubro 2012.
Alucinação
Michel Gondry é um cineasta francês que ganhou um Óscar com o filme Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2005). A par de Chris Cunningham e Spike Jonze, Michel Gondry é um dos mais destacados realizadores de vídeos musicais. Dirigiu vários anúncios publicitários. É conhecido pelo efeito Gondry, uma variante complexa da técnica de frozen. Os seus vídeos propõem uma relação com o espaço e um encadeamento de sequências alucinantes. Seguem duas relíquias: o anúncio Flashbacks (1997), para Smirnoff, e o vídeo musical Like a Rolling Stone (1995), dos Rolling Stones, um dos primeiros vídeos em que Michel Gondry recorre ao efeito Gondry.
Marca: Smirnoff. Título: Flashbacks. Agência: Lowe-Horward-Spink. Direcção: Michel Gondry. UK, 1997.
Rolling Stones. Like a Rolling Stone. Michel Gondry. 1995.
Glória
Não há segmento mais propenso a anúncios apoteóticos do que o automóvel. O anúncio Peugeot Exalt Concept é um bom exemplo. Lembra, no esquema, e em várias passagens, o anúncio See How it Feels (2007) da BMW (http://tendimag.com/2013/08/31/a-publicidade-e-a-musica/). Ambos apostam na sequência livre de fragmentos, culminando num final messiânico, ora de revelação, no caso do Peugeot, o automóvel acaba por ser exibido como um todo, ora de promessa, no caso do BMW, o automóvel, no seu conjunto, é apenas sugerido pelos fragmentos.
Peugeot Exalt Concept (versão longa). França, Abril 2014.
A Publicidade e a Música
Na comemoração dos 110 anos, a Harley-Davidson lança uma nova linha com a etiqueta Project Rushmore. A campanha abre com o anúncio Our Night (vídeo 1), que aposta na sucessão de fragmentos (da máquina e dos motards), bem como na música (a HD abriu expressamente um concurso, tendo sido seleccionados os irlandeses The Strypes com um cover de Come Together, dos Beatles (vídeo 2). O resultado é brilhante. É verdade que a aposta em fragmentos (detalhes e pormenores) e em música original e impactante vem de longe. Lembro, por exemplo, o anúncio See How It Feels (2007), da BMW, com um cover da 9ª Sinfonia de Beethoven pelos germânicos UNKLE (vídeo 3).
Marca: Harley-Davidson. Título: Our Night. Agência: VSA Partners, Chicago. Direção: Alexander Paul. EUA, Agosto 2013. Música: The Strypes.
The Strypes. Come Together. 2013.
Algumas bandas adquiriram fama graças a este tipo de publicidade. Por exemplo, os suecos Oh Laura, com o anúncio Release Me (2007), da SAAB (vídeo 4). A publicidade e a música, aproximam-se numa parceria aparentemente virtuosa. Na verdade, o grosso da publicidade repousa em canais, como a televisão, que tendem a funcionar cada vez mais de um modo ambiental. Já não beneficiam nem da exclusividade da atenção nem do essencial do interesse dos públicos. Neste quadro, importa estimular todos os sentidos. A audição sobressai como um dos mais decisivos.
Anunciante: BMW. Título: See How It Feels. Agência: WCRS, London. Direção: Warren Du Preez & Nick Thornton Jones. Reino Unido, Fevereiro de 2007. Música: UNKLE.
Sobre a figura do fragmento na publicidade, publiquei, em 2009, um artigo “dobras e fragmentos: a turbulência dos sentidos na publicidade de automóveis”, retomado no livro Vertigens. Para uma sociologia da perversidade, Coimbra, Grácio Editor, 2009, pp. 47-63. Pode descarregar o texto sem as imagens aqui: Dobras e Fragmentos. Enfim, tenho um carinho muito especial pela Harley-Davidson, uma vez que colocámos uma destas máquinas de culto entre dois enormes anjos tocheiros na exposição Vertigens do Barroco, no Mosteiro de Tibães. O efeito foi fantástico.
Anunciante: Saab. Título: Release Me. Agência: Lowe Brindfors, Sweden. Suécia Junho 2007. Música: Oh Laura.