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(re)encontro

O Departamento de Sociologia da Universidade do Minho, a Câmara de Melgaço e o Centro de Ciências em Comunicação entenderam por bem dedicar-me um momento de convívio na próxima terça, dia 29 de novembro, às 17:30, no museu D. Diogo de Sousa, em Braga. Suspeito que será mais uma festa do que uma cerimónia, menos fim de percurso e mais uma nova fase: “o primeiro dia do resto da vida”. Estou, em boa hora, aposentado, mas não arrumado. Intervêm Carlos Veiga, Manoel Batista, Madalena Oliveira e, em particular, Moisés de Lemos Martins, Álvaro Domingues, Rita Ribeiro, o Grupo Etnográfico da Casa do Povo de Melgaço e Francisco Berény Domingues. Alice Matos e António Joaquim Costa aceitaram moderar. Pelo meio, ensaiarei corresponder com um pequeno arremedo de aula para enganar saudades. Após a apresentação do livro Sociologia Indisciplinada, será servido um alvarinho de honra, com roscas de Melgaço.

Venha! Se é antigo aluno, traga, propiciando-se, um docinho para saborear o reencontro: um charuto, de Arcos de Valdevez; uma queijada, de Barcelos; uma sameirinha ou uma tíbia, de Braga; um miguelito, de Cabeceiras de Basto; um caminhense ou cerveirense, de Caminha ou Cerveira; uma passarinha ou um sardão, de Guimarães; uma fatia de bucho doce, de Melgaço; um biscoito de milho, de Paredes de Coura; um magalhães, de Ponte da Barca; uma castanhola, de Ponte de Lima; uma rocha do pilar, da Póvoa de Lanhoso; um beneditino, de Terras do Bouro; um sidónio ou uma bola de Berlim, de Viana do Castelo; uma broinha de amor, de Vila Verde… Com alvarinho, tudo cai bem!

O ar e a água, a voz e o sonho, numa tarde de domingo

O quarto anjo toca a trombeta (Apocalipse 8). Iluminura do Beatus de l’Escorial, ca. 950-955.

“Dorme com os anjos e sonha comigo porque um dia poderás dormir comigo e sonhar com os anjos” (anónimo)

O Tendências do Imaginário é um blogue unipessoal nada participado. Tenho sonhado com o oposto, com uma alternativa. Está, nesse sentido, em vias de construção um blogue coletivo que reúne autores amigos das áreas da cultura, da arte e do imaginário. Por enquanto, sempre que se proporcione, atrevo-me a abrir exceções convocando uma ou outra pessoa. É o caso deste recanto que dedico à Almerinda Van Der Giezen: deu-me a conhecer Meredith Monk e enviou-me, há tempos, o seguinte texto que rivaliza com os melhores escritos dos melhores sonhadores de estórias.

Meredith Monk & Collin Walcott. Cow Song. Our Lady of Late. 1973. Banda sonora da série Dark. Netflix. 2017

[Nina e Saul]

por Almerinda Van Der Giezen

“Nina disse a Saul:
– Que querem dizer estas palavras?
E Saul respondeu:
– Pensei que querias brincar.
Ao que Nina replicou:
– Magoa?”
Saul correu, com as mãos a cortar o vento e gritou:
– Nina! Nina! Onde estás?
Silêncio.
Ouvia-se apenas um assobiar baixinho, por entre as moitas. Nina espreitava, com o olhar acossado, vigiava todos os gestos de Saul.
Quando ele de súbito a viu, estremeceu. Disse-lhe:
– Não tenhas medo. É só a brincar.
Nina foi escorregando pelo chão, muito cautelosa, até chegar a Saul.
Olhou-o muito séria e perguntou-lhe:
– Quanto é a “a brincar”?
Saul tem largos horizontes dentro, a brincar com as fronteiras.
Irradiante, secreto algoz, acomete-se na missão de ser, não sendo.
Tem o olhar fundo e maduro de quem sabe o tempo e ri, ri muito, estremece as casas com o ruído do seu desejo.
Mas, num soluço interior, enrola-se, quedo. Tem medo de não ser feliz.
“Vamos brincar “, diz à Nina.
Nina tem perguntas simples de respostas impossíveis, um olhar muito aberto a querer saber o mundo, muita inocência, muito medo.
Quer correr contra o vento, subir aos montes, molhar os pés no mar, fazer castelos na areia, rir…rir muito.
Mas pergunta: “Magoa?” “Quanto é brincar?”
Dois sopros contra um muro.
Dois trovões.
Estava Saul sentado na beira do caminho, os braços e o rosto pendentes.
Quieto.
Nina abermou-se dele. Aninhou-se a entrar em seus olhos escondidos.
– Tens medo?, perguntou-lhe.
Saul titubeou as pestanas e, confuso, disse, para o vento:
– É longe de chegar.  Onde se começa?
Nina sorriu, gaiata. Olhou as flores minúsculas que bordavam a vereda, e o horizonte sem fim.
– Não é tão bom ser o infinito? Vamos descobrir os duendes na curva da estrada.  Enganamo-los?
Saul levantou de súbito a cabeça, incrédulo, e riu, riu muito, de Nina. Para Nina. Ficou aos pulos de contente, disse até:
– Conheço aquele malandro de barbas ruivas e dentes podres de comer amoras. Vou fazer-lhe uma que não vai esquecer.
E continuava gargalhando, sem querer caminhando pela estrada que tanto o acabrunhara. Agora era ele que contava histórias loucas a Nina que, secreta, reinventava a força de prosseguir. “Tanto tempo!”, pensava, “vou fazer de conta que estamos no mar”.
E assim foram os dois cabriolando no céu limpo de dores, velhos êxtases, sensabores.
Era o prazer de voar. “
O mar.
Saul a chorar, copiosamente.
Nina, tão muda, olhando-o.
O sol, quente, a brilhar.
Silêncio.
Cintilação.
Nina, tão muda, olhando.
Saul que sorri, sereno.
Nina, tão muda.
Ali.
Saul havia-lhe feito recordar: a alegria, o riso, a leveza, o voo.
Agora Nina perguntava:
– Dói-te, o mar?
Saul, a pele branca do salitre, tardava em responder.
Nina ajeitava o mar, com lentidão, com toda a paciência. As ondas iam, e vinham bater nas suas mãos abertas, e escorregavam pelos dedos, sem pressa, até formar um fiozinho brilhante que deixava um rasto vivo na areia.
Saul mirava o horizonte, com o queixo levantado, como se assim segurasse o eixo do mundo. Lembrava a Nina aquelas figuras prestes a conquistar o vento. Faltava-lhe apenas uma vela.
O vento assobiava, a rasar os cabelos e a pôr gotas no olhar.
Fitavam os dois o risco.
Sonhavam.
Saul virou as costas a Nina, caminhando pela areia, rumo ao tempo. Ela lembrava-lhe as dores dos primeiros passos, os tropeços, as corridas nos labirintos. E… não. Nina não entendia, levava-o para o remoinho. E olhou subitamente para a água, que remexeu em espiral, junto aos seus pés, plantados.
Ouviu a voz de Nina:
– Também estás aí. Podes fugir, mas as voltas enredam-se em ti.
– E tu? – pergunta Saul, sem se virar.
– Eu não sou um enredo.
– Porquê?
– Dou-te a mão.
– E se eu não quiser?
– A mão é longa e transparente, nunca te cortará.
– E se eu ainda não quiser?
– É porque pensas que eu quero.
– Não?
– Não.
– Explica-me.
– Quando brincávamos… lembras- te quando eu te fazia fintas e tu me insultavas?
– Às vezes era um sufoco.
– A minha mão estava sempre na tua.
– Eu não queria.
– Não querias, mas aquietavas-te.
– Tu, às vezes…
– Demais?
– Demais, sem mais – disse ele.
– Demenos, sem menos – disse ela.
– Queres que me volte? para o lado? para trás?
– Gostava que visses onde estou.
– Atrás de mim.
– Vê.
Saul virou-se bruscamente. Nina brincava com as ondas, em direcção ao mar. Abria os braços, com deleite, o peito aberto à brisa suave e melodiosa que enchia o ar.
– E agora, Nina, que me queres dizer?
– Quero dizer-te…
E, num gesto firme, Nina pegou-lhe na mão e levou-o para as ondas. Sentou-se na água, e pediu:
– Conta-me a história da amizade. O mar não sabe falar, e eu, às vezes, perco-me nas ondas.
– Eu tenho medo das ondas.
– Tens medo de mim?
Saul olhou-a. Saberia responder? Teve vontade de deixá-la de novo e voltar a caminhar na praia. Ela e aquelas perguntas…
Nina sorriu e disse-lhe:
– Lembras-te do amigo que ninguém te roubaria, porque ninguém sabia? Porque ninguém podia?
E acrescentou:
– Tenho a memória funda. E sou inviolável. Não queres ficar?
Saul sentou-se à beira dela, perguntou:
– Como é “querer ficar”?
Nina deu-lhe a mão. Olhou o mar. Disse:
– Sabes, é bom ter-te a meu lado…para perguntar-te coisas…
Saul, de repente, ficou com o rosto afogueado, a pergunta a queimar-lhe a garganta.
Nina não sabia se era a água salgada, se a inocência cruel que sustinha aquele nó. Saul olhava-a em súplica, sem emitir um som, fundo de uma espécie de agonia que Nina aplacava com o pensamento, dizendo, para si
” os caminhos da iniciação são fundos e feitos de lajedos; é preciso inscrever aí a pele”
Nina, me-nina!
Retornou ao lugar. A memória havia-a levado longe do horizonte, e Saul surtia no brilho do clarão verde, um susto de beleza.
“Adeus, Saul”, apeteceu dizer-lhe. Mas lembrou-se como essa palavra era tão “olá, como vais?”
– Vou viajar, responde-lhe Saul – não sei como voltarei. Trar-te-ei um pouco dos dias para que tu me contes uma história para eu adormecer.
– É, eu nunca fico. Realmente.
– Não querias?
– Gostaria, com amor.
Saul não se cansava de se surpreender. Que lhe dizia ela? Com amor? De que falava?
– Falo-te do futuro, das minhas memórias lendárias, do sopro que alimenta o mundo. Sabes como fantasio…
Saul deu-lhe um beijo, um segundo beijo, avidez, os lábios derrapando na pele de Nina. Que tormentos?
Deixou-a ir, com placidez, não a viu olhar para trás. Também não olhou para trás.
Sorriem. O vento já sopra baixinho, o mar veste-se de luz e a areia gorgoleja fantasticamente na pele do tempo. Sudações do Verão.
Verão.
Meninos caminhando na praia, com puro ardor no calor do
Verão. As ondas vão e vêm, afagando-lhes os pés cansados. Riem. Atiram pequenos seixos ao largo. Correm na desmesura do sossego quieto da tarde cálida.
Meninos. Caminhando na praia.
Mas o Verão ainda não havia chegado.
O mar continuava revolto e Saul, incólume, virava-lhe as costas, construindo as suas ameias, enfeitadas de conchas e algas esquecidas. Apenas, de quando em quando, mirava de soslaio o mar, não fosse surpreendê-lo, e ao seu castelo murado.
Nina, ao longe, alargava os passos, vagarosa. Num tropeço, caiu sobre si, e foram os seus soluços estremes que acordaram Saul. Caminhou até ela, mais curioso que preocupado, certo da fortaleza de Nina, suave declinar nas palavras.
Quando se aninhou junto dela, teve de lhe erguer a cabeça, que ela teimava em enfiar entre os joelhos, balouçando-se para trás e para a frente, as mãos cerradas como punhos, donde se escoavam grãos de areia.
Olhou-a. Pela primeira vez.  Olhou-a no fundo dos seus olhos e viu, viu tudo. O horror, a tristeza infinda, a ternura, a sede, a dor, a transparência. Apeteceu afogar-se ali, naquele mar de solidão. Perguntou-lhe assim:
– Que foi, Nina?
– A areia está a transformar-se em sal. Que faremos da cegueira? – e, ao dizer isto, lágrimas de areia perdida rolavam pela pele branca de espuma.
Saul teve o primeiro gesto de marinheiro da sua vida. Inclinou-se, e delicadamente, com a ponta dos seus dedos, retirou, um a um, os grãos do sal mordente do rosto de Nina.
Ela olhou-o longamente, a mágoa a sumir-se na luminosidade reencontrada. Agradeceu-lhe:
– Sabes, tenho uma vela de um barco antigo, lá, no meu sótão. Está um pouco rota, mas cosê-la-ei para ti.
E sorriu. Com mil estrelas.
Saul baixou a cabeça, timidamente, e foi até ao mar. Juntou alguma água entre as mãos e foi regar o seu castelo, vendo-o desfazer-se lenta e docemente.
Disse a Nina:
– O Verão está a chegar.
– Saul?
– Nina…
– É tempo de ir à floresta.
– E o barco?
– É o sonho…
– E o frio, as sombras?
– É só o medo. As sombras são as nossas mortes.
– E os picos, as silvas? Como fazemos?
– Desvia-as suavemente, como se as afagasses, e a dor não te cortará. Respira a floresta como se faz o amor.
– Nina, preciso de luz.
– Há sempre uma clareira na floresta, Saul.
– E duendes?
– Estamos no tempo das cerejas. Divertem-se a construir pequenas casas com os caroços e os seus telhadinhos feitos de caules. Abrigam-se no tronco da cerejeira louca com flores do Japão. Outros, armam-se de fisgas, a desafiar os ouriços do castanheiro bravio. Existe também uma pequenina fada, com cabelos de miosótis, que tinge os lábios nos morangueiros silvestres. E à noite, o céu deita-se na erva fofa e salpica-se de todas as estrelas sonhadas pelo arco-íris. A lua cobre todos os segredos. Há quem diga até, que nessas noites quentes e azuis, o velho e sábio carvalho entra nas danças de roda, e de mãos dadas com as campainhas cor de oiro, se faz rosado de luz, e ri, muito verde, feito menino. A terra sussurra músicas encantadas e os musgos acariciam-lhe o ventre. Os pirilampos espreitam no meio dos embaraçados arbustos que tapam a vereda. No pequeno lago, os nenúfares bailam, de mansinho, e pedem…um toque de pétala…uma asa de borboleta…
– Nina?
– Saul…
– É tempo de irmos à floresta.
– Depois ensinas-me o mar? “
(Almerinda Van Der Giezen)
Meredith Monk. Do You Be. Key. 1971
Meredith Monk. Memory song. Do You Be. 1987. Bang on a Can All-Stars com Meredith Monk, Theo Bleckman & Katie Geisinger, 2011

O Anjo da Conexão e o Velho do Restelo

Acredita em anjos? Então este artigo é para si.

Edward Hopper. Office in a small city. 1953.

Não é por um comportamento se manifestar “ferido de interesse” que está fadado a prejudicar o bem comum (Bernard Mandeville, A Fábula das Abelhas: ou, Vícios privados, benefícios públicos, 1714). Inspirando-me em Pierre Ansart (Idéologies, Conflits et Pouvoir, 1977), também não é por uma ideia ser interessada que resulta necessariamente falsa. Como corolário, por muito estranho que pareça, não é a generosidade de um gesto ou de uma ideia que garantem a sua verdade ou bondade. Pode não ser um erro confiar em quem é movido por interesses, nem tão pouco duvidar de quem nos quer bem. Vem este arrazoado a propósito da publicidade, domínio que os missionários da beatitude tendem a associar à quintessência do mal, à perversão ideológica no purgatório da mercadoria. Acresce que não existe instância que detenha o monopólio do acesso à sabedoria. Nem sequer a ciência ou a religião. Aprende-se como e com quem se aprende, independentemente da forma e do conteúdo, da embalagem e do miolo. Daqui a afirmar que tenho vindo a adquirir mais conhecimento com a publicidade do que com a ciência quase vai um passo. Confesso, porém, que, nos últimos tempos, tenho consumido mais anúncios publicitários do que artigos científicos com impacto. Em termos de conhecimento, um anúncio publicitário costuma valer menos pelo que comporta e mais pelo que suscita, pelo que induz a sentir e a pensar. Trata-se, sobretudo, de uma interpelação que nos cumpre assimilar, no sentido piagetiano do termo. Um anúncio não se limita a alcançar-nos, desafia-nos, mobiliza o nosso “acervo de conhecimentos disponíveis” (Alfred Schütz, Collected Papers I: The Problem of Social Reality, 1962). Munido com estas barbaridades, afigura-se-me que o anúncio indiano Joy of Homecoming, da Vivo, constitui uma excelente ilustração das potencialidades da publicidade.

Um idoso vive, just him and his loneliness, numa mansão, em aparente desafogo económico. Os seus três filhos residem longe, onde têm o seu trabalho e os seus compromissos. Falta-lhes meios e tempo, até para prolongar os breves momentos de videoconferência. Para mitigar a solidão, o pai optou por alugar um quarto. Apenas um, o reservado aos hóspedes. Nos outros, intactos, dorme a memória dos filhos, sua energia vital. A ação inicia com a chegada de um novo inquilino. A música, fundamental, canta o destino; e o jovem inquilino veste o papel de um anjo, que recorda As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders. O jovem faz companhia ao “tio adotivo”, anima-o e tira-lhe fotografias, que envia aos filhos. Inesperadamente, o “sobrinho” parte antes do termo: sente saudades da mãe. Ouve-se a campainha. Será, de novo, a solidão? Não, a solidão não bate assim. São s três filhos que, dispersos pelo mundo, se juntam, como por milagre, para o Diwali, festividade indiana, homóloga do Natal, que celebra a reunião e a vitória do bem sobre o mal: “invoca o retorno da deusa Rama para a cidade de Ayodhya, após um longo período de ausência” e “festeja a vitória do Deus Krishna sobre as forças do mal”. O anúncio termina sem se saber se o “anjo da conexão” foi enviado por Deus ou pela Vivo. Talvez o milagre, um pouco mais prosaico, reverta para o “poder das imagens” em que a Vivo acredita.

José Malhoa. O emigrante. 1918.

O anúncio indiano Joy of Homecoming, apesar da distância geográfica e cultural, assenta-nos como um espelho. Sucede o mesmo em Portugal, País que se tornou tão pequenino num mundo tão vasto. O princípio dos vasos comunicantes funciona na sociedade ao contrário: os fluxos passam do mais pequeno para o maior até ao desequilíbrio final. As migrações já não são o que eram: para além das famílias mais pobres, recrutam entre as mais abastadas e as mais diplomadas. Distinguem-se, contudo, das antigas deslocações dos nobres e dos burgueses. Não as move o luxo, mas a necessidade. A figura do pai remediado separado dos filhos expande-se e multiplica-se com um vírus. Nestes tempos em que o distante se aproxima e o movimento se acelera, a alienação, a separação, pode ser brutal. Não por falta de amor ou de desejo, mas por falta de… disponibilidade! As nossas sociedades estão entre as que mais comunicam e menos comungam. São as mais ricas da História, mas também as mais pobres da humanidade. Sociedades obcecadas pelo crescimento, criam mais necessidades do que possibilidades. É essa a riqueza, é essa a penúria. Como escreve o antropólogo Marshall Sahlins: “idade de pedra é a idade da abundância”; “a sociedade moderna é a sociedade da insatisfação” (Stone Age Economics, 1974). Os pigmeus perfilhavam uma sabedoria que nos é estranha: recusavam as ofertas dos colonos que introduziam.  novas necessidades, logo mais esforço. Mendigamos existência. Antes da pandemia, uma criança pergunta à professora de história: “e nós, o que vamos contar aos netos?”. Preocupação sem fundamento, mas sentida. Mendigamos afetos. Pais sem filhos, mães sem pais, avós sem netos e amigos sem abraços, desencontramo-nos.

Ars moriendi, 1470 ca.

Somos a primeira civilização que promove o morrer em solidão (Norbert Elias, La solitude des mourants, 1982). É verdade que em algumas sociedades os moribundos se afastavam dos vivos, respeitavam, no entanto, a norma, configurava um afastamento ritual que fazia sentido na respetiva condição e cultura. Agora, os moribundos não se isolam normativamente, mas na prática e pela prática, por fatalidade, como uma espécie de excrescência. À volta do leito, máquinas e peritos. Nem sombra de familiares, amigos, anjos ou demónios (ver O Galo e a morte: https://tendimag.com/2017/10/13/o-galo-e-a-morte-revisto/). Andamos descompensados, problema que apenas se agravou e evidenciou com os sucessivos confinamentos pandémicos. Entretanto, já andávamos à deriva. E não há vacina, nem anjo, nem imagem que nos acuda! Talvez nós, aliviando a carga que tanto ambicionamos e tanto nos esmaga. Talvez se deixássemos de nos armar em sísifos que só saber subir e subir, empurrar projetos encosta acima, até lhe faltar o ar. A vontade de superação é o nosso emblema. É também o nosso problema.

Sísifo empurrando uma pedra vigiado por Perséfone. Ânfora grega. Cerca de 560 a.c.

Não fui eu quem escreveu este texto. Foi o meu avatar reacionário e romântico, o Velho do Restelo. Um exercício, uma maneira como outra qualquer de fechar o ano.

Marca: Vivo. Título: Celebrate the #JoyOfHomecoming this Diwali. Agência: Dentsu Impact. Direção: Viveck Dasschaudhary. Índia, outubro de 2021.
Robbie Williams. Angels. Álbum: Life thru a Lens. 1997.
Manuel Freire – “Fala do Velho do Restelo ao astrónauta” poema de José Saramago. Álbum: Pedra Filosofal. 1973.

A graça da desgraça

Albrecht Dürer. Estudo de mãos.1506.

“O acaso é Deus que passeia incógnito” (Albert Einstein).

A graça da desgraça, o encontro feliz de seres infelizes, após uma travessia solitária, constitui um dos temas candidatos ao topo do emocionómetro, o “termómetro das emoções”. Sobretudo quando esta reunião improvável assenta na partilha de um pormenor identitário, por exemplo, dois coxos abandonados pela vida. É o que nos conta o anúncio Four Legs Good, da Trustpower, uma empresa neozelandesa de energia e telecomunicações. O velho e o cão foram feitos um para o outro, mas corriam o risco de nunca se cruzar. Tal como como os consumidores e a Trustpower. Este anúncio joga com os nossos sentimentos e as nossas emoções? Trata-se, naturalmente, de um dos principais talentos e desafios da publicidade! Alguns anúncios fazem-no assim outros assado, uns melhor outros pior, uns mais outros menos.

Marca: Trustpower. Título: Four Legs Good. Agência: Art and Industry. Direção: Chris Dudman. Nova-Zelândia, outubro 2021.

O diabo apaixonado. A mulher e o diabo

Jacques Le Grant. – Le livre des bonnes moeurs. XVe siècle. Musée Condé de Chantilly.

No imaginário cristão, o diabo seduz, preferencialmente, a mulher. Tudo indica que está mais exposta à tentação demoníaca. O destino começa no início: foi Satanás, Arimane, sob a figura de serpente, quem tentou a primeira mulher e esta, o primeiro homem. O Martelo das Feiticeiras (Heinrich Kraemer & James Sprengerm, 2004, O Martelo das Feiticeirass, Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Ventos, 1ª edição 1486) assegura existir um “maior número de mulheres supersticiosas do que de homens” (p. 114). “Por serem mais fracas na mente e no corpo, não surpreende que se entreguem com mais frequência aos atos de bruxaria” (p. 113). São mais crédulas, socorrem-se mais de poderes maléficos e passam a palavra, prestam-se ao contágio. Com estas e outras sentenças,

“Só em 1485, apenas no distrito de Worms, 85 feiticeiras foram entregues às chamas. Em Genebra, em Basileia, em Hamburgo, em Ratisbona, em Viena, e em muitas outras cidades, ocorreram execuções do mesmo género. Em Hamburgo, entre outros, queimou-se vivo um médico que salvou uma mulher em trabalho de parto abandonada pela parteira. No ano 1523, em Itália, após uma bula contra a feitiçaria aprovada pelo papa Adriano VI, só a diocese de Como assistiu à queima de cem bruxas” (Albert Réville. Histoire du Diable, ses origines, sa grandeur et sa décadence, à propos d’un récent ouvrage allemand. Revue des Deux Mondes, Paris, 2e période, tome 85, 1870, pp. 101-134: III).

Francisco Goya. El Aquelarre. 1797–1798.

“Passaram anos e anos / Sobre esta roda da vida, / Farinha que foi moída, / Vai-se a ver são desenganos” (Fernando Assis Pacheco, Pedro Só). Passaram anos e anos e o imaginário mudou. O Martelo das Feiticeiras tornou-se símbolo de um pesadelo histórico. No anúncio Match Made in Hell, o diabo não só seduz como é seduzido. Por intermédio de uma agência de encontros, Match, o diabo e a donzela envolveram-se num namoro aprazível. Um par, à partida, improvável, uma nova forma de amor. Já no século XVIII, se discorria sobre a figura do “diabo apaixonado” (Cazotte, Jacques, Le diable Amoureux, Paris, 1772; traduzido para português por Camilo Castelo Branco; na imagem, capa da edição de 1845, da autoria de Edouard de Beaumont).

Marca: Match. Título: Match Made in Hell. Agência: Maximum Effort. Direção: Ryan Reynolds. Estados-Unidos, Dezembro 2020.

O nariz da discórdia

Cleópatra de Berlim, busto romano de Cleópatra, c. século I a.C. Museu Antigo, na Alemanha.

A gaffe é o centro do anúncio Plastic Surgery, da Scotch Brite. Uma gaffe abismal, maior do que o nariz de Cleópatra. A lançar foguetes e a apanhar as canas, a gente espeta-se. Desmancha-se. Desliza a cara para o fundo das costas.

Marca: Scotch-Brite. Título: Plastic Surgery. Agência: Grey (Argentina). Argentina, 2007.

Quando um cego chora

Pieter Bruegel. A parábola dos cegos. 1568

O domingo é sagrado, dia de ansiolíticos e antidepressivos naturais. Há quem combine uns e outros. Na vida quotidiana também se entrelaçam (Norbert Elias e Eric Dunning, A busca da excitação, 1986). Por exemplo, durante um espectáculo de futebol as doses alternam-se (Albertino Gonçalves, Vertigens, 2009). Domingo é dia de compensação. Mais vale jogar à sueca em casa do que labirintar no poker de massas. Gosto de namorar o passado. O passado não para de crescer! O presente não o agarro e o futuro não o conheço. O meu passado é um contrabandista: atravessa as fronteiras do tempo. O domingo é dia de música. Música ultrapassada. Um rosário de pérolas barrocas, amuleto contra os carneiros de Panurgo (François Rabelais, Pantagruel, c. 1532). Já coloquei no Tendências do Imaginário a canção When a blind man cries, dos Deep Purple (https://tendimag.com/2015/10/01/when-a-blind-man-cries/). Uma espécie de gata borralheira para o Ritchie Blackmore, a música foi editado num single em 1972. Esperou pelos anos noventa para subir aos palcos e figurar nas antologias. A versão de 1999 de Ritchie Sambora, ex Bon Jovi, pouco difere do original. Mas o vídeo musical é pedagógico. Ensina que 1) não existem abraços electrónicos; 2) Os média podem estimular abraços; 3) Por detrás dos média, há sempre alguém; e 4) os sonhos existem e são humanos.

Só agora, concluído o texto, me apercebi, enquanto procurava um vídeo com melhor resolução, que esta curta-metragem foi escrita e realizada por um português: Nuno Rocha, para a LG Portugal. Pontes.

Richie Sambora (Deep Purple cover) – When A Blind Man Cries | LG — «Momentos». Guião e realização de Nuno Rocha. 2010.

O primeiro passo

Bianco. The Lift. 2019.

O anúncio dinamarquês The Lift, da Bianco, revela-se inteligente, criativo, original, minimalista, lento e convincente. A interacção no elevador peca por incomunicação verbal e não verbal. Desejo sem iniciativa, sentimento sem risco, corpos sem contacto. “Amor que arde sem se ver”. Convenha-se que a interpelação do outro, seja qual for a orientação sexual, é cada vez mais problemática. E, no entanto, a menina até perdeu o emprego por excesso de utilização do elevador. Feitos um para o outro e faltou-lhes uma acendalha. Aperta-nos este nosso cerco interior, sem janela nem tranca, que nos separa de quem nos atrai!

Marca: Bianco. Título: The Lift. Agência: & Co. Direcção: Daniel Kragh-Jacobsen. Dinamarca, Março 2019.

Estou em crer que se o elevador tivesse música, o desfecho seria diferente. O primeiro passo culminaria num passo de dança. A música reduz a censura dos afectos. Para ajudar, acrescento duas músicas do compositor irlandês Phil Coulter: In Loving Memory (1998) e Tranquility (1984).

Phil Coulter. In Loving Memory. Serenity. 1998.
Phil Coulter. Tranquility. Sea of Tranquility. 1984.

Para além do céu azul

Órgão de Tibães

Órgão do Mosteiro de Tibães

Acabou o Encontro de Sociologia (mosteiro de Tibães). Quando a realidade ultrapassa o sonho, a gente sente-se assim, não sabe bem como; sente-se também assado, não sabe bem como. Hoje, levantamos a cabeça, erguemos o olhar e rasgamos horizontes. Fomos “para além do céu azul”.

Seguem duas músicas do álbum beyond the Missouri Sky (1997), de Charlie Haden e Pat Metheny: The Moon is a Harsh Mistress e Spiritual.

Contratempos do amor

Sixt

O amor, além de cego, pode ser parvo, não pode? Amar requer mais resiliência do que inteligência? Certo é que a confusão do Tom pode acontecer a muito boa gente, não pode? Celebremos São Valentim, dia santo profano dos namorados.

Marca: Sixt. Título: A Sixt Love Story. Agência: Thjnk. Direcção: Laurent Chanez. Alemanha, Fevereiro 2018.