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A Sociedade Calibrada

Quando se acorda mal disposto e com vontade de irritar os outros, não há nada como escrever uma crónica arrevesada.

A Sociedade Calibrada

O texto não está completo. Foi publicado numa página da Internet que, entretanto, desapareceu. Segue o texto original:

“Após a luta contra a intolerância religiosa, o racismo, a discriminação de género, a homofobia e a violência doméstica, o processo civilizacional envereda por uma nova fase: a calibragem. Tal como as maçãs nos hipermercados, as pessoas ganham em ter a medida certa, sem rugas nem defeitos. Nem grandes, nem pequenas, lisas por fora e homogéneas por dentro. Depiladas, desodorizadas e insípidas. Figuras de terracota de um exército chinês.

Em tempos de previdência e prospetiva hipermedicalizadas, cada um é responsabilizado pelas medidas do seu caixão. A calibragem, com a respetiva fotometria do ajustamento, tornou-se comezinha e vizinha da estigmatização.

Há casos progressivamente assumidos como desafios morais, entorses estéticos e fardos coletivos. Pelo que se constata e pelo que se antecipa. Alguns destes casos prendem-se com o consumo, mormente de tabaco, bebidas e alimentos… De um modo geral, ao contrário do sexo e da raça, uma pessoa não nasce fumador, alcoólico ou obeso, torna-se. Torna-se em algo que não é uma fatalidade. Pode corrigir-se e remediar-se. Estas particularidades têm o condão de abrir uma caixa de Pandora repleta de moralismos, estigmas e campanhas. O mal é evitável, importa combatê-lo. Empenham-se os dispositivos de Estado, as organizações não governamentais e os cidadãos numa massagem quotidiana crónica. De proximidade e à distância. Quem não esboçou um gesto, uma palavrinha que fosse, para a conversão de alguma ovelha tresmalhada? Uma iniciativa angelical de cuidado do outro, que é carrasco e vítima de si mesmo. Nasceu um novo mandamento: calibrai-vos uns aos outros. Trata-se de uma missão natural, clarividente. Previnem-se suicídios a prazo e homicídios por negligência frente ao espelho. Fumar mata! O álcool mata! A obesidade mata! A vida morre…

A promoção da calibragem em massa arrisca convocar a estigmatização e a discriminação. O estigma não é apenas uma marca negativa, é uma nódoa poluidora que contagia o resto. Assim como se observa a tendência para gritar quando se fala com um cego, também extrapolamos quando interagimos com um fumador, um alcoólico ou um obeso. Deduzimos, abusivamente, o todo a partir da parte.

Este tipo de estigmatização não nasceu hoje. Há séculos que se rebaixam os bêbados e os obesos. Observa-se, porém, uma diferença. Outrora, ridicularizavam-se os obesos, mas não se lhes receitava a magreza. Agora, até os magros têm que cuidar de o ser.

A propósito da notoriedade do estigma e da trama da discriminação, não vai um século que, na Europa, se estampavam identidades e se carimbavam corpos. Também se retalharam espaços públicos para segregação coletiva. Hoje, as práticas de sensibilização e de prevenção dos excessos, de consumo de tabaco, de bebidas e de alimentos, tão pouco pecam pela discrição. Ostensivas, ubíquas e chocantes, na comunicação social, na rua, em casa e nos bolsos. Sustenta-se que os fins justificam os meios, e os meios justificam tudo. Navegando entre Cila e Caribdis, as democracias mostram-se capazes de albergar equações típicas dos totalitarismos que a podem subverter. Nas narinas da democracia ainda se respira o cheiro da intolerância.

Estas considerações vêm a propósito de três iniciativas recentes respeitantes à obesidade. A primeira, um centro de fitness lança um anúncio intitulado Fat Kills! que termina com a frase: Kill Fat. É o mais recente de uma longa série que desconsidera aberta e grotescamente os obesos (http://tendimag.com/2013/05/15/a-linha-e-o-botao/). A segunda refere-se à declaração do Presidente da Abercrombie & Fitch: a empresa vai deixar de fabricar roupas em tamanhos grandes, porque não quer clientes gordos ou feios vestindo as peças da marca (http://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/presidente_da_abercrombie__fitch_diz_que_as_suas_roupas_nao_sao_para_gordos_e_feios.html). A terceira iniciativa diz respeito ao concurso Peso Pesado, da SIC, um autêntico purgatório de corpos (http://sic.sapo.pt/online/sites+sic/peso-pesado/). Asseguram que é um programa didático e pedagógico. Mas intrusivo e calibrador. Os concorrentes, gladiadores que combatem contra o próprio corpo, entregam-se a uma longa e pública expiação da carne.

A obesidade comporta riscos e incómodos. Acarreta implicações ao nível da morbilidade e da esperança de vida. Acresce que o Estado se preocupa cada vez mais com a nossa morte. “Viver para a morte” emerge como um lema cada vez menos absurdo. A morte é calculada e a vida assistida. Sem rugas, sem protuberâncias, sem excessos e a custo mínimo. Tudo tende a ser assistido. Até a direção dos automóveis.

Esta política do corpo aproxima-nos dos fantasmas da ficção científica: do reino da assepsia, da repetição e da perfeição castradora. Mas a experiência da sociologia sugere que a diferença é tão importante para a sociedade quanto a rosa para o Principezinho.

Uma última nota. Com a informação disponível, é difícil ser a favor do tabagismo, do alcoolismo ou da obesidade. Mas não é essa a questão. A questão reside na forma como se lida com essas realidades, na calibragem social e na quimera de uma humanidade sem defeitos. A sociedade hipermedicalizada está a gerar anticorpos a mais.

Robert Castel faleceu no dia 12 de março de 2013. Aprendi com ele a arte da sociologia. Esta crónica inspira-se na sua obra, nomeadamente nos livros Le Psychanalysme (1972) e L’Ordre Psychiatrique (1977)” (Albertino Gonçalves, 20 de Maio de 2013).