Admirável mundo novo

Acabaram as grandes narrativas e os admiráveis mundos novos. Exceto, talvez, o espantoso mundo “pós-novo” da Internet. Na época de Antonín Dvorak (1841-1904), a América era o novo mundo, era o novo mundo desde 1492. Aquando da estreia da Sinfonia do Novo Mundo, em 1893, o Velho Mundo descobria o coração de África, continente nem novo, nem velho, mais tarde “Terceiro”. O célebre e traumático Ultimato Inglês (1890) precedeu três anos a Sinfonia do Novo Mundo.
Em 1893, ainda havia, na América, cowboys, winchesters, colts e xerifes. A vitória dos índios em Little Big Horn (1876) estava fresca na memória. Sitting Bull, um dos protagonistas, foi baleado em Dezembro de 1890. Gerônimo estava na prisão, Calamity Jane era viva. Buffalo Bill montou, em 1883, um circo móvel com espetáculos dedicados ao Oeste Selvagem. Nos livros aos quadradinhos, os cowboys dormem com a cabeça repousada na albarda, aconchegados pelas estrelas. Só lhes falta a música de Dvorak.
Estreada nos Estados Unidos, a Sinfonia do Novo Mundo é empolgante (lembra a nona de Beethoven; ver vídeo 2). Mas contém trechos “suaves e doces”, capazes de embalar um cowboy solitário ou um coração melancólico (vídeo 1).
Vício
Segue o fruto do vício: o último artigo do Tendências do Imaginário do ano 2019.
Foi lançado, recentemente, um novo videojogo do Dragon Ball Z: Kakarot. No trailer, um jovem adulto recorda a sua relação com o Dragon Ball. Aproxima-se de um otaku, um fã obstinado. O trailer realça esse perfil. O protagonista imita os heróis e os seus gestos. Expõe-se, absorve e “reproduz”. O fenómeno é bom ou mau consoante as perspetivas. Para quem concebeu o trailer, parece desejável. Pessoalmente, não sei. Quando era pequeno, adorava os filmes, os livros e as brincadeiras de cowboys. Comprava livros usados, com ou sem quadradinhos, numa tabacaria do Largo dos Penedos, em Braga. Trocávamos livros de cowboys como quem troca cromos. A imersão não era menor do que face a um ecrã. Percorria quilómetros para ver uma série na televisão espanhola ou portuguesa: Bonanza, Jim West, Daniel Boone… Um western esgotava a geral do cinema Pelicano. Brincávamos aos cowboys, uma espécie de escondidas em que dois grupos se caçavam mutuamente e o toque era substituído pela visão: “mãos ao ar, vi-te primeiro”. No quintal, acertava com flechas feitas com varetas de guarda-chuva nas laranjas metamorfoseadas em índios. Cheguei a lutar com o travesseiro. Boa parte dos meus desenhos retratava cowboys. Tive pistolas de plástico e uma máscara de índio. Até falava com o sotaque dos atores norte-americanos. O cavalo era o meu animal de sonho. Um dia, o meu padrinho diz-me: – Vamos comprar um cavalo. Partimos para a Póvoa de Varzim. Deu as suas voltas e, a um dado momento, entrámos num edifício amplo que tinha cavalos. Falou com as pessoas do local. Regressou: – Só vendem os cavalos com as carroças. Respondi-lhe: – Assim não quero! É assim que se jardinam os sonhos das crianças. Em suma, tal como agora existe o otaku dos anime e dos mangá, eu era um otaku da coboiada. Teve efeitos? Naturalmente. A focagem é, por mais fantástica que seja, um estreitamento e um enviesamento do mundo. Se Armand Mattelard analisasse os livros, as séries e os filmes de cowboys, descobriria, como nas revistas da Walt Disney, falácias e perversidades. Existem eras, os anos cinquenta e sessenta foram a era dos cowboys; seguiu-se a era dos espiões e, um pouco mais tarde, a era dos anime e dos mangá. Há eras e eras, a dos cowboys coincidiu com a guerra fria. Ficaram-me marcas negativas? Tenho o corpo todo torto de andar a cavalo e quando aponto o dedo saem balas. Por acréscimo, fumo como os cowboys da Marlboro.
Vou festejar. Bom Ano!