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Saco de batatas

A jornalista Paula Telo Alves cita o Tendências do Imaginário no editorial de O Contacto, Jornal do Luxemburgo, intitulado Sinais de Fumo, a propósito do projecto do governo luxemburguês no sentido de tornar obrigatória a instalação de detectores de fumo em todas as casas, incluindo as privadas. Para aceder ao artigo de Paula Telo Alves, carregar na seguinte imagem.

Esqueleto fumador.

No ano 2018, 18,8% das visitas ao Tendências do Imaginário provêm de Portugal; menos de metade do Brasil, 44,4%, e o mesmo que os Estados-Unidos, 18,6%. Relativizando, em Portugal, 26 visitas por 10 000 habitantes, e no Brasil, 3 por 10 000 habitantes. Confesso que já não sei para quem escrevo.

Cabe aos fumadores uma pesada sobrecarga fiscal. Não é segredo. No entanto, entre os fumadores não predominam as classes médias nem as classes altas. As classes populares estão sobre-representadas. O imposto sobre o tabaco é tudo menos solidário. Configura um imposto focado, por que só atinge um segmento da população, e um “imposto cego e injusto porque afecta os contribuintes de igual forma, apesar das disparidades dos rendimentos disponíveis”. É uma solução de recurso que colide com o princípio da progressividade fiscal. Pagam os mais pobres para todos. Duvido que esta equação seja constitucional. Mas deve ser. Os grandes textos como a constituição costumam ser poliglotas. Uma pessoa faz uma pergunta numa língua e a resposta vem noutra.

Em muitos países, a legislação e a propaganda anti-tabaco parecem desafiar as liberdades e garantias constitucionais. Sustenta-se que é para proteger os não-fumadores, vítimas do fumo intrusivo. Este argumento da discriminação de alguns para proteger os outros é antigo. Há noventa anos, protegia-se a raça. Durante a Idade Média e a Idade Moderna, a Inquisição “salvou” muitos heréticos de si mesmos. O homem permanece feito da mesma massa. Os nichos da intolerância e do totalitarismo são fáceis de construir. A privacidade tem-se manifestado, historicamente, a principal presa do totalitarismo. Totalitarismo e privacidade são antagónicos. 

Creio nos interpretes da constituição mais do que o turista inglês acredita na limpeza das ruas do Porto. 

 

“Um inglês descia a avenida dos Aliados. Depara-se com um imprevisto no passeio. Observa e pensa:

  • Isto parece cocó, mas cocó no Porto não pode ser.
  • Com a ponta do guarda-chuva toca na anomalia.
  • Isto é mole como cocó, mas cocó no Porto não pode ser.
  • Com a ponta do guarda-chuva extrai uma amostra que aproxima do nariz:
  • Isto cheira a cocó, mas cocó no Porto não pode ser
  • Aproxima a ponta do guarda-chuva e prova.
  • É mesmo cocó, ainda bem que não pisei.

Aflige-me que tantas organizações governamentais, para-governamentais e não-governamentais se empenhem sistemática e ostensivamente em associar o fumador, acima de dois milhões de pessoas em Portugal, à morte, ao morrer e ao morto. Além de mórbido é macabro. Se esta propensão não é uma afronta à dignidade dos cidadãos, então qual é o significado constitucional de dignidade? Como é possível que um Estado democrático divulgue “ameaças de morte” aos seus cidadãos por “crime de fumo”? Como é possível que as campanhas anti-tabaco se resumam, essencialmente, a ameaças de morte? Será que existem responsáveis que acreditam que o mundo é um videojogo?

O cigarro e a morte
O cigarro, a cinza, o fumo e a morte.

Tantas organizações anti-tabaco e nenhuma pró-fumador! Este desequilíbrio desassossega-me: O que impede os fumadores de se mobilizar através de organizações e associações? A resposta mais sensata encontro-a num apontamento de Karl Marx acerca dos camponeses:

“Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condições semelhantes mas sem estabelecerem relações multiformes entre si. Seu modo de produção os isola uns dos outros em vez de criar entre eles um intercâmbio mútuo (…). Uma pequena propriedade, um camponês e sua família; ao lado deles, outra pequena propriedade, outro camponês e outra família. Algumas dezenas de elas constituem uma aldeia e algumas dezenas de aldeias constituem um Departamento. A grande massa da nação francesa é, assim, formada pela simples adição de grandezas homólogas, da mesma maneira que batatas em um saco constituem um saco de batatas.” (Karl Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, 1852).

Pulverizados enquanto massa, os fumadores portugueses constituem, tal como os camponeses de Karl Marx, um saco de dois milhões de batatas. 

O fumador suicida ou o cigarro mortal