Raiva
E la carne va. A evasão da carne. Por Fernando Gonçalves. 18/08/2021. 2 A Deus nunca se pede que chegue. Por Fernando Gonçalves. 18/08/2021.
“Todos os meus tormentos cingem-se a uma passagem – Do medo à esperança, da esperança à raiva” (Jean Racine, Bérénice, 1670).
Tive a sorte de ter excelentes companheiros nos quartos do Hospital. O último lamentava-se e chorava com frequência. Ao aparar a relva, uma pedra vazou-lhe um olho: – Meu Deus, MeuDeus, o que me foi acontecer. Que vai ser dos meus dois filhinhos? Valha-me Deus! Interrompi-o, com aquele jeito blasfemo: – Deus anda a fumar haxixe! (charutos, diria Serge Gainsbourg). Saiu assim: nu, bruto e abrupto. E as lágrimas cederam ao riso.
Cintila uma raiva daninha no meu olhar embaciado. Brota das entranhas. Manifesta-se de duvidosa utilidade.
A Ceia dos Pobres (eventualmente chocante)
Os símbolos mais sagrados, como a hóstia, não estão ao abrigo do rebaixamento grotesco. Antes pelo contrário (http://tendimag.com/2013/06/26/sacrilicioso/). Memória puxa memória, e eis que se insinua a paródia da última ceia no filme Viridiana (1961), de Luis Buñuel. Vi Viridiana, filme de culto, palma de ouro em Cannes, há mais de trinta anos. A sequência ainda hoje impressiona.
Na ausência dos patrões, um grupo de pobres apropria-se, por um tempo, da casa senhorial. A visita descamba em orgia coletiva. A transgressão culmina no episódio em que a ceia decalca o quadro de Leonardo da Vinci. Trata-se de um cúmulo do grotesco: o tópico mais elevado da religião cristã, a Eucaristia, é, a pretexto de um simulacro de fotografia, associado ao tópico simbolicamente mais baixo do corpo humano, os órgãos genitais femininos. Este tipo de grotesco, sinistro e dissolvente, lembra a fase negra de Goya e, naturalmente, o filme surrealista Le Chien Andalou (1928), de Luis Buñuel e Salvador Dali.
Junto um excerto do filme Viridiana, suscetível de perturbar os espíritos mais sensíveis e mais devotos. Acrescento o filme Le Chien Andalou, porventura ainda mais desconcertante e mais violento. O filme Viridiana, nome de santa do século XIII, foi censurado pelo papa João XXIII, por blasfémia e indecência, e proibido em Espanha até 1977, dois anos após a morte de Franco.
Luis Buñuel. Viridiana. Episódio da ceia. Espanha, 1961.
Luis Buñuel e Salvador Dali. Le Chien Andalou. França, 1928.