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ISI Riders. A ciência na era da comunicação generalizada

“Demasiada luz ofusca”
Blaise Pascal

ScienceComecei uma crónica que ficou obesa. Adquiriu dimensão de artigo. Por cautela, cortei-a às postas para a publicar num formato amigável. Estou a ficar alérgico à palavra artigo: causa-me urticária e, às vezes, gastroenterite. Na modernidade retardada, um artigo que se preze deve aspirar à honra de uma revista com fator de impacto. Assim ditam os categóricos. Acodem-me algumas imagens insidiosas: o cientista como mendicante, como homem-sanduíche ou como funcionário do espírito.

Escrevo artigos sobre temas que me interessam, em revistas que aprecio, normalmente por convite. Apego-me a estes pequenos nadas: autonomia, escolha e colaboração. Não deixo de ponderar que, num blogue razoável, um texto meu colherá mais leitores em cinco dias do que um artigo, também meu, numa revista com fator de impacto em cinco anos. Continuo a ruminar: por que motivo um artigo publicado numa revista portuguesa vale quase nada e a sua tradução numa revista estrangeira com fator de impacto vale quase tudo? Anda aqui mão de Conde Andeiro.

Os donos do poder e da ciência estão a transformar a investigação num espécime sem corpo, só cabeça, a modos como o bilionário do romance I Will Fear No Evil, de Robert A. Heinlein. Um cientista parece cada vez mais um jogador de basquetebol. É um encestador de papers. É o gesto, a arte, que define o artista.

Porquê tamanha fixação em organizações como a ORCID ou em bases de dados como a SCOPUS? Será que alguém quer filtrar e acelerar a informação na comunidade científica? Ontem sonhei com a Nova Jerusalém da ciência: vi tribos de cientistas a convergir em filas para a cidade sagrada: o mercado global do saber hiper-normalizado. Uns entusiasmados, outros calados, outros recalcitrantes. Adivinha-se algum ranger surdo de dentes, mas, deste jeito, só sofrem os maxilares.

Em Portugal, há um ditado novo: se queres semear, começa pela cúpula. Para promover alguns, desvaloriza-se o resto. O poder é um bom fertilizante. Faz crescer dependências. E os jogos do poder são uma seiva mais viciante do que as máquinas dos casinos. O mocho já foi símbolo da sabedoria, a honra cabe agora ao cuco. À semelhança da maçã de Prévert, a ciência não é para pintar, é para fazer. O contrário é uma falácia.

O Passeio de Picasso

Numa base bem redonda de porcelana real
posa uma maçã
Face a face com ela
um pintor da realidade
em vão tenta pintar
a maçã tal como ela é
mas
ela não vai deixar

e o pintor atordoado perde de vista seu modelo
e adormece
É então que Picasso
enquadrando-se ali como em toda oportunidade
cada dia como em sua casa
vê a maçã e o prato e o pintor adormecido
Que ideia de pintar uma maçã
diz Picasso
e Picasso come a maçã
e a maçã lhe diz Obrigado
e Picasso quebra o prato
e sai dali sorridente
e o pintor arrancado de seus sonhos
como um dente
se encontra só novamente diante da sua tela inacabada
com os terríveis caroços da realidade
bem no meio da sua louça despedaçada.

Jacques Prévert, 1949