Primavera

Pressente-se a Primavera. Antonio Vivaldi dedicou-lhe uma composição e Giuseppe Arcimboldo, vários quadros. As obras de Vivaldi e de Arcimboldo sofreram, ambas, um longo eclipse histórico. Apenas foram redescobertas na primeira metade do século XX.
A pedreira das luzes
Em Baux de Provence, em França, uma pedreira de calcário branco foi transformada num espaço museológico imersivo que acolhe exposições de obras de arte: a Carrière de Lumières. Com técnicas avançadas de projecção, as paredes, num total de 4 000 m2, animam-se com imagens gigantescas, algumas em movimento. Pela Carrières de Lumières, já passaram Paul Cézanne, em 2006, Vincent Van Gogh, em 2008, Pablo Picasso, 2009… Uma exposição com Hieronymus Bosch, Pieter Bruegel e Giuseppe Arcimboldo está patente até 07 de Janeiro de 2018. Um ramalhete fantástico, acompanhado pela música de Vivaldi e dos Led Zeppelin. Um espectáculo empolgante. “Os franceses não têm petróleo, mas têm ideias”. Obrigado, Adélia!
Bosch, Bruegel e Arcimboldo. Carrières de Lumières. 2017
Ilusão sobre rodas
“A vida não é excogitação da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão” (Friedrich Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, 1886)
Há imagens reais graças à imaginação. A ilusão no anúncio da Nur Die não é bem uma ilusão. É imediatamente decifrável. A ilusão radica no modo como é fabricada. Neste caso, mais relevante do que a ilusão, é a maneira de a produzir. Ao jeito dos quadros de Arcimboldo. Distintas são as ilusões propostas por Escher. Mergulham-nos em mundos impossíveis sensorialmente plausíveis. Para aceder ao anúncio, carregue na imagem.
E depois do adeus
Não se brinca com o fogo, com Deus, com os sentimentos, com a sombra… E com a morte? Num anúncio recente, uma viúva bebe chá com as cinzas do marido defunto (O cão que sabia demais). Neste anúncio, um cadáver é alvo de cosmética inconveniente. Sempre se brincou com a morte, realidade demasiado séria. Em tempos, não se brincou tanto quanto parece: as imagens medievais que, agora, consideramos engraçadas, como as danças da morte, não tinham, então, graça nenhuma. A relação actual com a morte é ambígua. Oscila entre o limpo e o sujo: a morte asséptica convive com a morte poluída. Por exemplo, a cremação de um morto e a exibição de cadáveres nos maços de cigarros.
Marca: National Jazz Awards. Título: Death becomes you. Agência: DDB Toronto. Direcção: Josefina Nadurata / James Davis / Jen Walker. Canadá, 2005.
Descomplicar
O Anúncio Simple makes sense, da Aegon Life Insurance, não é simples, mas faz sentido. Alinha, uma a uma, várias ilusões ao jeito de Escher e Arcimboldo. Mas ilusões descomplicadas. O anúncio aposta numa equação inversa à usual: não desconstrói uma realidade para construir uma irrealidade, desconstrói uma irrealidade para construir uma realidade (ver http://tendimag.com/2013/11/24/nao-ha-dois-sem-tres/). Cada ilusão alude a uma vertente simplificadora do acesso à Aegon Life Insurance: o labirinto, por exemplo, deixa de ser um labirinto para os funcionários da seguradora: “Simple says you don’t have to care about insurance, your insurance should care about you”.
Carregar na imagem para aceder ao anúncio.
Marca: Aegon Life Insurance. Título: Simple makes sense. Agência: DDB Mudra Group. Direcção: Arun Gopalan. Índia, Janeiro 2016.
A decomposição da realidade e a recomposição da ilusão
A arte de Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) paira sobre a actualidade (ver http://tendimag.com/2012/01/22/comer-com-os-olhos-os-alimentos-em-arcimboldo/). Apraz-nos “decompor uma ordem e recompor uma desordem”, segundo a expressão de Severo Sarduy (Barroco, Paris, Ed. du Seuil, 1975). Esta recomposição de uma desordem gera um efeito, uma ilusão, de realidade. Pode ser complexa, como nos quadros de Arcimboldo, ou simples como no anúncio da Moe’s Southwest Grill: um pedaço de nachos funciona como corpo de uma guitarra elétrica.
Marca: Moe’s Southwest Grill. Título: Chip Guitars Rock. Agência: Focus Brands. Direcção: Chris Bailey. USA, Setembro 2015.
O site Culture Pub (http://www.culturepub.fr/) contempla uma categoria chamada “quand la musique est bonne”. Este anúncio é um sério candidato. Pete Townshend, guitarrista dos The Who, participa no anúncio. Pretexto para relembrar a banda: Baba O’Riley e Behind blue eyes, são duas canções do álbum Who’Next, de 1971.
The Who. Baba O’Riley. Who’s Next. 1971.
The Who. Behind blue eyes. Who’s Next. 1971.
Músculos Musicais
Michel Gondry é um dos grandes realizadores da atualidade. Ganhou um óscar em 2005, com o filme Eternal Sunshine of the Spotless. Dirigiu dezenas de vídeos musicais: para Bjork, The Rolling Stones, Beck, The Chemical Brothers, The White Stripes… É uma figura incontornável da publicidade (ver http://tendimag.com/2011/09/15/um-voo-sem-asas/).
A Gillette apostou forte neste anúncio: Training Tracks. Contratou Michel Gondry e não regateou meios. Reuniu estrelas do futebol americano e recorreu a Phil Mossman, dos LCD Soundsystem.
Marca: Gillett. Título: Training Tracks. Agência: BBDO New York. Direção: Michel Gondry. USA, Setembro 2013.
O esquema utilizado no anúncio é antigo. No século XVI, Giuseppe Arcimboldo já contrabandeava realidades: com frutos, flores, legumes e objectos díspares, configurava retratos de imperadores, princesas, bibliotecários, cozinheiros, advogados… (http://tendimag.com/2012/01/22/comer-com-os-olhos-os-alimentos-em-arcimboldo/; e http://tendimag.com/2011/09/15/jogos-de-legos-com-humanos/). Neste anúncio, os fragmentos de realidade não são imagens mas sons. Provenientes do treino dos desportistas no ginásio adquirem ritmo e musicalidade. É possível que a ideia de recomposição de sons não seja completamente original. Mas, como diria Pascal, “ninguém me acuse de não ter dito coisas originais. A disposição das matérias é nova, e isso é que importa”. Pois, com o toque de Michel Gondry, que foi baterista de uma banda, e de Phil Mossman, guitarrista e percussionista, a “disposição das matérias” resulta excelente.
Fricção
Uma amiga enviou-me esta curta-metragem, Dimensions of Dialogue, do realizador surrealista checo Jan Svankmajer. As primeiras imagens lembram figuras de Arcimboldo em movimento. O imaginário é, porém, distinto. Na obra de Arcimboldo, predominam as “relações complementares”: os quatro elementos e as quatro estações do ano conjugam-se, na sua diversidade, para significar o poder unificador do imperador sobre o tempo e sobre o espaço, ou seja, sobre o mundo. Os quadros de Arcimboldo ou se completam ou permanecem singulares, como é o caso do Bibliotecário, de Flora ou do Cozinheiro. Em contrapartida, na curta-metragem de Jan Svankmajer, as relações são “simétricas” (Bateson, Gregory, Naven, 1936). As figuras agridem-se, devoram-se umas às outras. A própria semelhança, a mesmidade, é diabólica: atrai, separa e destrói.
Jan Svankmajer. Dimensions of Dialogue, Checoslováquia (República Checa), 1982.