O ar e a água, a voz e o sonho, numa tarde de domingo

“Dorme com os anjos e sonha comigo porque um dia poderás dormir comigo e sonhar com os anjos” (anónimo)
O Tendências do Imaginário é um blogue unipessoal nada participado. Tenho sonhado com o oposto, com uma alternativa. Está, nesse sentido, em vias de construção um blogue coletivo que reúne autores amigos das áreas da cultura, da arte e do imaginário. Por enquanto, sempre que se proporcione, atrevo-me a abrir exceções convocando uma ou outra pessoa. É o caso deste recanto que dedico à Almerinda Van Der Giezen: deu-me a conhecer Meredith Monk e enviou-me, há tempos, o seguinte texto que rivaliza com os melhores escritos dos melhores sonhadores de estórias.
[Nina e Saul]
por Almerinda Van Der Giezen
“Nina disse a Saul: – Que querem dizer estas palavras? E Saul respondeu: – Pensei que querias brincar. Ao que Nina replicou: – Magoa?” Saul correu, com as mãos a cortar o vento e gritou: – Nina! Nina! Onde estás? Silêncio. Ouvia-se apenas um assobiar baixinho, por entre as moitas. Nina espreitava, com o olhar acossado, vigiava todos os gestos de Saul. Quando ele de súbito a viu, estremeceu. Disse-lhe: – Não tenhas medo. É só a brincar. Nina foi escorregando pelo chão, muito cautelosa, até chegar a Saul. Olhou-o muito séria e perguntou-lhe: – Quanto é a “a brincar”? Saul tem largos horizontes dentro, a brincar com as fronteiras. Irradiante, secreto algoz, acomete-se na missão de ser, não sendo. Tem o olhar fundo e maduro de quem sabe o tempo e ri, ri muito, estremece as casas com o ruído do seu desejo. Mas, num soluço interior, enrola-se, quedo. Tem medo de não ser feliz. “Vamos brincar “, diz à Nina. Nina tem perguntas simples de respostas impossíveis, um olhar muito aberto a querer saber o mundo, muita inocência, muito medo. Quer correr contra o vento, subir aos montes, molhar os pés no mar, fazer castelos na areia, rir…rir muito. Mas pergunta: “Magoa?” “Quanto é brincar?” Dois sopros contra um muro. Dois trovões. Estava Saul sentado na beira do caminho, os braços e o rosto pendentes. Quieto. Nina abermou-se dele. Aninhou-se a entrar em seus olhos escondidos. – Tens medo?, perguntou-lhe. Saul titubeou as pestanas e, confuso, disse, para o vento: – É longe de chegar. Onde se começa? Nina sorriu, gaiata. Olhou as flores minúsculas que bordavam a vereda, e o horizonte sem fim. – Não é tão bom ser o infinito? Vamos descobrir os duendes na curva da estrada. Enganamo-los? Saul levantou de súbito a cabeça, incrédulo, e riu, riu muito, de Nina. Para Nina. Ficou aos pulos de contente, disse até: – Conheço aquele malandro de barbas ruivas e dentes podres de comer amoras. Vou fazer-lhe uma que não vai esquecer. E continuava gargalhando, sem querer caminhando pela estrada que tanto o acabrunhara. Agora era ele que contava histórias loucas a Nina que, secreta, reinventava a força de prosseguir. “Tanto tempo!”, pensava, “vou fazer de conta que estamos no mar”. E assim foram os dois cabriolando no céu limpo de dores, velhos êxtases, sensabores. Era o prazer de voar. “ O mar. Saul a chorar, copiosamente. Nina, tão muda, olhando-o. O sol, quente, a brilhar. Silêncio. Cintilação. Nina, tão muda, olhando. Saul que sorri, sereno. Nina, tão muda. Ali. Saul havia-lhe feito recordar: a alegria, o riso, a leveza, o voo. Agora Nina perguntava: – Dói-te, o mar? Saul, a pele branca do salitre, tardava em responder. Nina ajeitava o mar, com lentidão, com toda a paciência. As ondas iam, e vinham bater nas suas mãos abertas, e escorregavam pelos dedos, sem pressa, até formar um fiozinho brilhante que deixava um rasto vivo na areia. Saul mirava o horizonte, com o queixo levantado, como se assim segurasse o eixo do mundo. Lembrava a Nina aquelas figuras prestes a conquistar o vento. Faltava-lhe apenas uma vela. O vento assobiava, a rasar os cabelos e a pôr gotas no olhar. Fitavam os dois o risco. Sonhavam. Saul virou as costas a Nina, caminhando pela areia, rumo ao tempo. Ela lembrava-lhe as dores dos primeiros passos, os tropeços, as corridas nos labirintos. E… não. Nina não entendia, levava-o para o remoinho. E olhou subitamente para a água, que remexeu em espiral, junto aos seus pés, plantados. Ouviu a voz de Nina: – Também estás aí. Podes fugir, mas as voltas enredam-se em ti. – E tu? – pergunta Saul, sem se virar. – Eu não sou um enredo. – Porquê? – Dou-te a mão. – E se eu não quiser? – A mão é longa e transparente, nunca te cortará. – E se eu ainda não quiser? – É porque pensas que eu quero. – Não? – Não. – Explica-me. – Quando brincávamos… lembras- te quando eu te fazia fintas e tu me insultavas? – Às vezes era um sufoco. – A minha mão estava sempre na tua. – Eu não queria. – Não querias, mas aquietavas-te. – Tu, às vezes… – Demais? – Demais, sem mais – disse ele. – Demenos, sem menos – disse ela. – Queres que me volte? para o lado? para trás? – Gostava que visses onde estou. – Atrás de mim. – Vê. Saul virou-se bruscamente. Nina brincava com as ondas, em direcção ao mar. Abria os braços, com deleite, o peito aberto à brisa suave e melodiosa que enchia o ar. – E agora, Nina, que me queres dizer? – Quero dizer-te… E, num gesto firme, Nina pegou-lhe na mão e levou-o para as ondas. Sentou-se na água, e pediu: – Conta-me a história da amizade. O mar não sabe falar, e eu, às vezes, perco-me nas ondas. – Eu tenho medo das ondas. – Tens medo de mim? Saul olhou-a. Saberia responder? Teve vontade de deixá-la de novo e voltar a caminhar na praia. Ela e aquelas perguntas… Nina sorriu e disse-lhe: – Lembras-te do amigo que ninguém te roubaria, porque ninguém sabia? Porque ninguém podia? E acrescentou: – Tenho a memória funda. E sou inviolável. Não queres ficar? Saul sentou-se à beira dela, perguntou: – Como é “querer ficar”? Nina deu-lhe a mão. Olhou o mar. Disse: – Sabes, é bom ter-te a meu lado…para perguntar-te coisas… Saul, de repente, ficou com o rosto afogueado, a pergunta a queimar-lhe a garganta. Nina não sabia se era a água salgada, se a inocência cruel que sustinha aquele nó. Saul olhava-a em súplica, sem emitir um som, fundo de uma espécie de agonia que Nina aplacava com o pensamento, dizendo, para si ” os caminhos da iniciação são fundos e feitos de lajedos; é preciso inscrever aí a pele” Nina, me-nina! Retornou ao lugar. A memória havia-a levado longe do horizonte, e Saul surtia no brilho do clarão verde, um susto de beleza. “Adeus, Saul”, apeteceu dizer-lhe. Mas lembrou-se como essa palavra era tão “olá, como vais?” – Vou viajar, responde-lhe Saul – não sei como voltarei. Trar-te-ei um pouco dos dias para que tu me contes uma história para eu adormecer. – É, eu nunca fico. Realmente. – Não querias? – Gostaria, com amor. Saul não se cansava de se surpreender. Que lhe dizia ela? Com amor? De que falava? – Falo-te do futuro, das minhas memórias lendárias, do sopro que alimenta o mundo. Sabes como fantasio… Saul deu-lhe um beijo, um segundo beijo, avidez, os lábios derrapando na pele de Nina. Que tormentos? Deixou-a ir, com placidez, não a viu olhar para trás. Também não olhou para trás. Sorriem. O vento já sopra baixinho, o mar veste-se de luz e a areia gorgoleja fantasticamente na pele do tempo. Sudações do Verão. Verão. Meninos caminhando na praia, com puro ardor no calor do Verão. As ondas vão e vêm, afagando-lhes os pés cansados. Riem. Atiram pequenos seixos ao largo. Correm na desmesura do sossego quieto da tarde cálida. Meninos. Caminhando na praia. Mas o Verão ainda não havia chegado. O mar continuava revolto e Saul, incólume, virava-lhe as costas, construindo as suas ameias, enfeitadas de conchas e algas esquecidas. Apenas, de quando em quando, mirava de soslaio o mar, não fosse surpreendê-lo, e ao seu castelo murado. Nina, ao longe, alargava os passos, vagarosa. Num tropeço, caiu sobre si, e foram os seus soluços estremes que acordaram Saul. Caminhou até ela, mais curioso que preocupado, certo da fortaleza de Nina, suave declinar nas palavras. Quando se aninhou junto dela, teve de lhe erguer a cabeça, que ela teimava em enfiar entre os joelhos, balouçando-se para trás e para a frente, as mãos cerradas como punhos, donde se escoavam grãos de areia. Olhou-a. Pela primeira vez. Olhou-a no fundo dos seus olhos e viu, viu tudo. O horror, a tristeza infinda, a ternura, a sede, a dor, a transparência. Apeteceu afogar-se ali, naquele mar de solidão. Perguntou-lhe assim: – Que foi, Nina? – A areia está a transformar-se em sal. Que faremos da cegueira? – e, ao dizer isto, lágrimas de areia perdida rolavam pela pele branca de espuma. Saul teve o primeiro gesto de marinheiro da sua vida. Inclinou-se, e delicadamente, com a ponta dos seus dedos, retirou, um a um, os grãos do sal mordente do rosto de Nina. Ela olhou-o longamente, a mágoa a sumir-se na luminosidade reencontrada. Agradeceu-lhe: – Sabes, tenho uma vela de um barco antigo, lá, no meu sótão. Está um pouco rota, mas cosê-la-ei para ti. E sorriu. Com mil estrelas. Saul baixou a cabeça, timidamente, e foi até ao mar. Juntou alguma água entre as mãos e foi regar o seu castelo, vendo-o desfazer-se lenta e docemente. Disse a Nina: – O Verão está a chegar. – Saul? – Nina… – É tempo de ir à floresta. – E o barco? – É o sonho… – E o frio, as sombras? – É só o medo. As sombras são as nossas mortes. – E os picos, as silvas? Como fazemos? – Desvia-as suavemente, como se as afagasses, e a dor não te cortará. Respira a floresta como se faz o amor. – Nina, preciso de luz. – Há sempre uma clareira na floresta, Saul. – E duendes? – Estamos no tempo das cerejas. Divertem-se a construir pequenas casas com os caroços e os seus telhadinhos feitos de caules. Abrigam-se no tronco da cerejeira louca com flores do Japão. Outros, armam-se de fisgas, a desafiar os ouriços do castanheiro bravio. Existe também uma pequenina fada, com cabelos de miosótis, que tinge os lábios nos morangueiros silvestres. E à noite, o céu deita-se na erva fofa e salpica-se de todas as estrelas sonhadas pelo arco-íris. A lua cobre todos os segredos. Há quem diga até, que nessas noites quentes e azuis, o velho e sábio carvalho entra nas danças de roda, e de mãos dadas com as campainhas cor de oiro, se faz rosado de luz, e ri, muito verde, feito menino. A terra sussurra músicas encantadas e os musgos acariciam-lhe o ventre. Os pirilampos espreitam no meio dos embaraçados arbustos que tapam a vereda. No pequeno lago, os nenúfares bailam, de mansinho, e pedem…um toque de pétala…uma asa de borboleta… – Nina? – Saul… – É tempo de irmos à floresta. – Depois ensinas-me o mar? “ (Almerinda Van Der Giezen) |
Estou a chamar as minhas cabras

Volvidos quarenta anos, reencontrei uma amiga graças ao Tendências do Imaginário e ao Facebook. Publicou livros de poesia. Retenho o poema “Estou a chamar as minhas cabras”, humano e cósmico, um apelo e uma voz das raízes num imaginário que lembra Castro Laboreiro.
estou a chamar as minhas cabras
o dia fecha-se
um canto de pássaro já levanta as sombras
a cancela rangepesa-me o silêncio
por isso chamo as minhas cabrasos aloendros trazem -me aquele aroma
veio a coruja
e os lamentos a açoitar o ventovou chamar as minhas cabras
conto os grãos aligeiro os medos
levo-te na minha cesta
envolto no pão com passas
para oferecer àquele penedosão as águias que já lá vêm
e as colinas tombam
é tudo um segredochamarei as minhas cabras
quando a noite cantar
e trouxer consigo a lenda
dos lobos brandos e montanheirosfoge-me a voz
alongo o ouvido em quebrantoiria chamar as minhas cabras
na ventania errantee a música alisando as fragas
as luas rodopiando
os silvos cortam o ar
chamandosão as minhas cabras
dançando
os montes sulcando à procura de mimfui chamada pelas minhas cabras
a noite abre-se
a memória do mundo ecoou no tempo
e o silêncio viveé uma flor
que chama pelas minhas cabras
elas me levaramno monte me deitarei
eu e as minhas cabras(Almerinda Van Der Giezen)
Galeria de imagens: Caprinos (carregar nas figuras para as destacar).








