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Horae ad usum Parisiensem. Antecipação medieval do surrealismo

Grandes Heures de Jean de Berry Fol. 12v

Há muito que andava à pesca do livro Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry], concluído em 1409. Acabo de o encontrar na Biblioteca Nacional de França. Reservados às elites, luxuosamente ilustrados com gravuras fabulosas, os livros de horas multiplicam-se durante a Baixa Idade Média. Correspondem a uma viragem da relação dos cristãos com o divino: a oração, retomada várias vezes, a horas certas, ao dia, é assumida em ambiente privado com recurso à mediação de imagens. Sobreviveram milhares de livros de horas. Em Portugal, o mais célebre é o Livro de Horas de D. Manuel (entre c. 1517 e c. 1538), publicado pela Imprensa Nacional e Casa da Moeda (1983).

Com capa original de veludo violeta, com dois fechos de ouro, rubi, safira e seis pérolas, o manuscrito das Grandes Heures de Jean de Berry (300X400 mm) é composto por 126 folios (252 páginas) com calendário (f. 1-6), horas de Nossa Senhora (f. 8-42), sete salmos da penitência e litania dos santos (f. 45-52), pequenas horas da cruz (f. 53-55) e do Espírito Santo (f. 56-58), grandes horas da Paixão (f. 61-85) e do Espírito Santo (f. 86-101) e ofícios dos mortos (f. 106-123). O livro está disponível, para consulta e descarga, no seguinte endereço https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Segue uma montagem de uma das primeiras Horas de Nossa Senhora, acompanhada por uma galeria com iluminuras provenientes das margens, uma autêntica “antecipação” medieval do surrealismo do século XX (ver outros casos de “antecipação” histórica do surrealismo nos artigos: https://tendimag.com/2020/03/24/aula-imaterial-4-maneirismo-e-surrealismo-sonhar-o-pesadelo/; https://tendimag.com/2020/04/04/aula-imaterial-5-maneirismo-e-surrealismo-2-humanoides/; https://tendimag.com/2012/05/05/braccelli-a-maneira-surrealista/).

Horae ad usum Parisiensem [Grandes Heures de Jean de Berry]. Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510

Galeria: Gravuras nas margens das Grandes Heures de Jean de Berry (carregar para aumentar). Fonte: Bibliothèque Nationale de France: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b520004510.

Alterações climáticas e crise na Idade Média

Da Biblia Pauperum, iluminada em Erfurt por altura da Grande Fome de 1315-1317. A Morte surge como um leão cuja longa calda termina em bola de fogo – o Inferno. A boca aberta, destacada a vermelho, representa a Fome.

“A Grande fome de 1315-1317 na Europa (também datada entre 1315-1322) foi a primeira de uma série de crises sociais em larga escala que atingiram a Europa no início do século XIV, causando milhões de mortes por um grande número de anos, marcando assim o fim de um período anterior de prosperidade no continente durante o século XIII. Iniciando com um tempo ruim na primavera de 1315, a alteração climatológica acabou por provocar quebras universais das colheitas entre a primavera de 1315, que se acentuaram no verão de 1316 até ao verão de 1317. A Europa não se recuperou totalmente até 1322. Foi um período marcado por níveis extremos de crimes, doenças, mortes em massa e infanticídio. Houve consequências para a Igreja Católica, os Estados nacionais, a demografia do continente a sociedade europeia como um todo. A grande fome de 1315 contribuiu para potencializar as futuras calamidades do século XIV. (…) Para a maioria das pessoas não havia o suficiente para comer e a vida era relativamente curta. Atendendo aos registos respeitantes à Família Real Britânica, a melhor e mais abonada da sociedade, a expectativa de vida média em 1276 era de 35,28 anos. Entre 1301 e 1325, durante a Grande Fome, reduziu-se para 29,84 anos. Durante a peste negra, caiu para 17,33 anos (…) Na primavera de 1315, chuvas caíram chuvas acima do normal na maior parte da Europa. Na primavera e no verão, continuou chovendo e a temperatura manteve-se fria. Nestas condições, os grãos não germinavam. (…) As taxas de produção de trigo (o número de sementes que uma pessoa poderia consumir por semente plantada) estavam em queda desde 1280 (…) Numa situação de bom tempo, a taxa era de 7:1, enquanto nos anos ruins descia até 2:1, isto é, para cada semente plantada, duas sementes eram colhidas, uma para o ano que vem, e uma para alimentação. Por comparação, a agricultura moderna possui taxas de 200:1 ou mais (..,) Os alimentos para os animais não podiam ser curados, deixando de existir ração para o gado. Os preços dos alimentos começaram a subir. Os preços na Inglaterra dobraram entre a primavera e o meio do verão. O sal, a única maneira de curar e preservar a carne, era difícil de obter, porque a água não evaporava com o tempo húmido: subiu de 30 para 40 xelins. Na província da Lorena, o trigo subiu 340% e os camponeses não tinham com que pagar o pão. As reservas de grãos para emergências de longo prazo estavam confinadas aos nobres e lordes. (,,,) Na primavera de 1316, continuava chovendo sobre uma população europeia desprovida de energias e reservas para se sustentar. Todos os segmentos da sociedade, dos nobres aos camponeses, foram afetados, especialmente os camponeses, que representavam 95% da população, e não possuíam suporte social. Para prover algum alívio, o futuro foi sacrificado, matando animais de reprodução, consumindo sementes de plantação, abandonando as crianças (…)  e negando alimentos aos idosos para dar hipóteses de sobrevivência às gerações jovens. As crónicas da época descrevem muitos incidentes de canibalismo. (…) O pico da fome foi atingido em 1317 quando o tempo húmido terminou. Finalmente, no verão, o tempo regressou ao padrão normal. As pessoas estavam tão enfraquecidas por doenças como pneumonia, bronquite e tuberculose, e muitas das reservas de sementes haviam sido consumidas, que apenas em 1325 os níveis de alimentos voltaram para condições relativamente normais anteriores à fome. (…) É estimado que entre 10%-25% da população de muitas cidades e vilas pereceram. Enquanto a Peste Negra (1338-1375) mataria mais em números reais, para muitos, a Grande Fome foi pior como calamidade social: a peste aniquilava uma área em alguns meses, a Grande Fome castigou durante anos, arrastando o sofrimento das pessoas que morriam lentamente de fome, enfrentavam canibalismo, infanticídio e crime descontrolado.” (A partir de Wikipedia, Grande Fome de 1315–1317: https://pt.wikipedia.org/wiki/Grande_Fome_de_1315%E2%80%931317. Acedido em 19/07/2022).

When God saw that the world was so over proud,
He sent a dearth on earth, and made it full hard.
A bushel of wheat was at four shillings or more,
Of which men might have had a quarter before….
And then they turned pale who had laughed so loud,
And they became all docile who before were so proud.
A man’s heart might bleed for to hear the cry
Of poor men who called out, “Alas! For hunger I die …!” (Poema de Eduardo II, c. 1321).

Imagem: Grandes Heures de Jean de Bérry. Séc. XIV-XV.

Imaginação e irreverência

1. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 1. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 2. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 2. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Nas margens dos livros medievais existem imagens de uma criatividade e de um atrevimento extremos. No fólio 18v do manuscrito Voeux du Paon (figuras 1 e 2), concluído cerca de 1350, “na margem esquerda, um animal híbrido, com cabeça humana coroada e corpo de serpente, toca gaita-de-foles com o ânus. Um animal híbrido, com cabeça humana, equilibra uma espada com a face” (Pierpont Morgan Library). O tema da gaita-de-foles é várias vezes retomado ao longo do livro.

 

Fig 3. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 3. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Na margem esquerda do fólio 28v, “um homem nu segura a cabeça e a perna amputadas. No fundo da página (bas-de-page), uma serpente engole um homem, do qual se vê apenas a cabeça. Na margem direita, um homem, com o rosto visível, espreita do interior de uma construção, provavelmente uma prisão ou um forno” (Pierpont Morgan Library).

Ambas as páginas nos apresentam híbridos disformes, desmontados e remontados em função da imaginação, mas também do imaginário. Muitas destas imagens eram escrupulosamente codificadas.

Fig 4. Fig 3. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 4. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 5. Fig 4. Fig 3. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

Fig 5. Voeux du paon. Northern France or Belgium, possibly Tournai, ca. 1350.

O beijo da imagem

Hours of Joanna the Mad, Bruges 1486-1506.

Hours of Joanna the Mad, Bruges 1486-1506.

Lindo, o beijo da imagem.
Lindo, dois caracóis a fazer amor.

Jan Swammerdam. “De respiratione”, 1667. Pormenor da capa.

Jan Swammerdam. “De respiratione”, 1667. Pormenor da capa.

Lindo, uma mulher com treze braços a mostrar o caminho a um monge.

Fortuna. Giovanni Boccaccio, Des cas des nobles hommes et femmes. Paris ca. 1410.

Fortuna. Giovanni Boccaccio, Des cas des nobles hommes et femmes. Paris ca. 1410.

Lindo, um bando de demónios a banhar-se no rio.

Pierre Salmon, Réponses à Charles VI et Lamentation au roi sur son état, Paris ca. 1408.

Pierre Salmon, Réponses à Charles VI et Lamentation au roi sur son état, Paris ca. 1408.

Lindo, uma árvore de falos num convento.

Roman de la Rose, France 14th century.

Roman de la Rose, France 14th century.

Lindo, o heróico e minúsculo pecado.

Missale Romanum of Amiens illuminated by Pierre de Raimbaucourt”. 1323.

Missale Romanum of Amiens illuminated by Pierre de Raimbaucourt”. 1323.

Lindo, um bispo montado de costas a caminho da missa do burro.

Le livre de Lancelot du Lac & other Arthurian Romances, Northern France 13th century.

Le livre de Lancelot du Lac & other Arthurian Romances, Northern France 13th century.

Lindo, um porco a andar de bengala depois da festa do presunto.

'L'Ystoire du tres sainct Charlesmayne, empereur et confesseur', France ca. 1475-1500.

‘L’Ystoire du tres sainct Charlesmayne, empereur et confesseur’, France ca. 1475-1500.

Calemo-nos, pois! Para acolher o beijo da imagem. Calemo-nos, de preferência, em inglês, para melhor forma e maior efeito.

OVMI (Objecto Voador Mal Identificado)

À memória de Raphael Pividal

Por estranho que pareça, na Idade Média a sexualidade era mais liberta, menos inibida e menos censurada do que nos nossos dias.

“Entre a maneira de falar sobre relações sexuais representada por Erasmo e a representada aqui por Von Raumer, é visível uma curva de civilização semelhante à mostrada em mais detalhe na manifestação de outros impulsos. No processo civilizador, a sexualidade, também, é cada vez mais transferida para trás de cena da vida social e isolada em um enclave particular, a família nuclear. De maneira idêntica, as relações entre os sexos são segregadas, colocadas atrás de paredes da consciência. Uma aura de embaraço, a manifestação de um medo sociogenético, cerca essa esfera da vida. Mesmo entre adultos é referida apenas com cautela e circunlóquios” (Norbert Elias, O processo civilizador, vol. I, Rio de Janheiro, Zahard Ed., 1994, p. 180).

Decretum Gratiani with the commentary of Bartolomeo da Brescia, Italy 1340-1345.

Decretum Gratiani with the commentary of Bartolomeo da Brescia, Italy 1340-1345.

Os manuscritos e as imagens medievais evidenciam esta “curva civilizacional” ao nível do controlo e da expressão da sexualidade. As aventuras de Panurgo no Pantagruel, de François Rabelais, fornecem uma amostra. Nas iluminuras, multiplicam-se, explícitas, as cenas de sexualidade, ora realistas, ora caricatas: árvores que dão falos, coitos, exibicionismos, sodomia… Não as mostro porque estamos no século XXI e este blogue é para todas as idades. A maioria pertence a cópias do Romance da Rosa (1230-1280).  Subsiste, no entanto, uma imagem que não resisto a partilhar. Considero-a a mais extraordinária. Pintada entre 1340 e 1345, representa um objeto voador mal identificado (OVMI).

Hieronymus Bosch. As Tentações de Sto Antão.  Pormenor. 1495-1500. Lisboa.

Hieronymus Bosch. As Tentações de Sto Antão. Pormenor. 1495-1500. Lisboa.

Será um peixe voador como aqueles que Hieronymus Bosch pintou 150 anos mais tarde no tríptico de Lisboa (As Tentações de Santo Antão, entre 1495 e 1500)? Ambos transportam pessoas, mas ao OVMI, o que falta em barbatanas sobra em orelhas. Ressalve-se a existência de uma associação simbólica entre o peixe e o OVMI, por exemplo, na mitologia maia (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dictionnaire des Symboles, Paris, Robert Laffont, 1982).

Illustrations depicting Waldensians as witches in Le champion des dames, by Martin Le France, 1451.

Illustrations depicting Waldensians as witches in Le champion des dames, by Martin Le France, 1451.

Será o OVMI uma vassoura montada por uma bruxa? A nudez confere, mas o dispositivo voador pode ter cabo, mas não tem feixe para varrer. Ora, as bruxas eram muito ciosas das suas vassouras… Não varriam e ainda menos voavam em vassouras amputadas.

Será um pão, um cacete, como o “pão catalão” de Salvador Dali (1932)? Um pão voador? Nada de pasmar, há vários registos do fenómeno. Um restaurante em Singapura chama-se The Flying Bread. Tratar-se-ia, neste caso, de um OVMI pasteleiro surrealista.

Salvador Dali. Catalan Bread. 1932.

Salvador Dali. Catalan Bread. 1932.

O peixe, a vassoura e o pão constituem três hipóteses plausíveis. Acrescento uma quarta: o OVMI é o fruto de uma faleira que tem como propriedade levar o homem e a mulher a cavalgar um peixe voador.

Subsistem, contudo, muitas dúvidas e algumas insuficiências metodológicas. Quer-me parecer que tamanho enigma só pode ser resolvido mediante uma investigação sistemática e aprofundada, conduzida por uma equipa interdisciplinar internacional, com acesso a alta tecnologia, apoiada por uma ou várias fundações mecenas, com publicação dos resultados numa revista estrangeira com factor de impacto.

Tansomania

The Geese Book

Geese Book. Nuremberga. Alemanha. Entre 1503 e 1510. Volume I – fol. 186r


Na Idade Média, sobretudo a partir do século XIII, multiplicam-se, nas margens dos manuscritos,  ilustrações alusivas a provérbios e anedotas. Lilian M. C. Randall sustenta que a maior parte destas imagens corresponde a exempla, tópicos de apoio à argumentação dos pregadores:

“Preaching in the vernacular, the Franciscans and, to an even greater extent, the Dominicans embellished their sermons with anecdotes, termed exempla. Intended to illustrate the doctrine in terms readily comprehensible to the general public, they were drawn from a host of literary sources as well as from popular tradition and contemporary events” (http://www.tepotech.com/Art_Bulletin/1957392JunRandall.pdf).

Cedendo ao anacronismo, estas iluminuras funcionariam como uma espécie de post-it da retórica e do imaginário medievais. Os livros de horas, os manuscritos de oração mais correntes, pertenciam a famílias. Destinavam-se à oração recatada. As ilustrações, mais do que exemplos, proporcionavam um deleite pessoal, associado ao prazer da imagem.

Geese Book. Nuremberga. Alemanha. Entre 1503 e 1510. Volume I – fol. 186r

O Geese Book (Nuremberga, Alemanha, 1503-510) é um livro, em dois volumes, com música litúrgica. Na figura 1, na margem inferior (Volume I – fol. 186r), um coro de gansos, dirigido por um lobo, é cobiçado por uma raposa (ver detalhe na figura 2). Este exemplo manifesta-se intemporal: os tansos, ingénuos, colocam-se entre os dentes do lobo e a boca da raposa, à mercê do poder e da astúcia. A esta propensão, passo a chamar tansomania.

Segue o cântico correspondente ao trecho com a imagem dos gansos (fol 186r):

Mass for ascension. Introitus Viri Galilei. The Geese Book. German Medieval Chant by Laszlo Dobszay, Janka Szendrei; Schola Hungarica. 2005

Galeria de Imagens de Salvação

Há semanas, no artigo com o vídeo Imagens de Salvação (http://tendimag.com/2013/08/23/imagens-de-salvacao/),  não anexei a respectiva galeria de imagens. Faço-o agora.

Imagens de Salvação

Um artigo com este perfil, só em férias, por vaidade e com vontade. Ano após ano, reuni centenas de imagens de livros de oração medievais. Constituem um dos principais repositórios fantásticos da humanidade. Não foi fácil seleccioná-las. Quanto às músicas, ainda foi mais complicado: destacaram-se duas cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o Sábio, interpretadas pelo Clemencic Consort. A meu ver, a música é a parte mais preciosa do vídeo. Sobram músicas prodigiosas por todo o mundo e em todas as épocas. Com a devida vénia à pós-modernidade, a “conquista do presente” e o umbigo globalizado têm alguma propensão para nos focar o olhar e nos empobrecer. Este vídeo não propõe nada de especial, a não ser que se veja ao espelho com outra cara.
Ao iniciar o vídeo, carregue, por favor, em HD, no canto superior direito. A qualidade compensa.

 

Albertino Gonçalves. Imagens de Salvação. Agosto 2012.