A tragédia de Silka

Os silkies (ou selkies) são criaturas mutantes da mitologia nórdica, nomeadamente das Ilhas Faroé, Islândia, Irlanda e Escócia. Vivem como focas no mar e humanos na terra. Para transitar de um meio para outro, têm que retirar, ou recolocar, a sua pele de foca. Sem as suas peles, as silkies, de rara beleza, convivem à vontade com os humanos, mas, mal recuperam a pele, não hesitam em regressar ao mar. Os contactos com os humanos são breves e espaçados de sete em sete anos. Regressada ao mar, a silkie evita rever o seu marido humano, mas não se furta a brincar com os filhos na praia.
As lendas com silkies assinalam a dualidade, difícil de conciliar, entre o mar e a terra, mundos separados entre os quais o trânsito só é possível mediante uma metamorfose associada a uma mudança de pele. Mas a pele que liga os dois mundos acaba por encerrar uma vulnerabilidade fatal que conduz a uma morte insólita e terrível. A pele como chave abre a porta a um destino invulgarmente trágico. The Selkie of Suleskerry distingue-se como uma das lendas mais célebres:
Uma jovem tem um filho de um homem desconhecido que se revelou ser um silkie: homem na terra, foca no mar, residia nas rochas de Sule. Volvidos sete anos, a criatura do mar regressa para reclamar o filho, ao qual oferece uma corrente de ouro. A mãe deixa-o partir. Passado algum tempo, esta casa-se com um caçador negociante em peles de animais. Um dia o marido regressa a casa com as peles de duas focas que tinha matado com o fim de as oferecer à esposa: uma era de uma velha foca cinzenta, a outra de uma foca jovem com uma corrente de ouro no pescoço! Ela morre, dilacerada pela dor causada por esta visão.
A lenda The Selkie of Suleskerry inspirou uma balada, com várias versões, entre as quais de Joan Baez (vídeo 1). A interpretação do trio britânico Serious Kitchen resulta particularmente interessante (ver vídeo 2). Angelo Branduardi traduziu a balada para italiano acompanhando-a com um arranjo próprio (álbum Il Rovo e la Rosa: ballate d’amore e di morte; ver vídeo 3). Mas o motivo principal deste artigo não reside nem no trio Serious Kictchen, nem em Angelo Branduardi, nem na lenda de Silkie em si mesma. Este artigo é dedicado ao conto Silka (Edições Afrontamento, 1989), um texto original de Ilse Losa, escritora portuguesa de origem alemã. Estimo-o como um dos contos mais maravilhosos que me foi dado devorar. Para preservar o impacto da surpresa, não adianto mais nada. Reforço apenas o convite: ao investir alguns minutos nesta leitura, não perderá tempo, conquistará um momento feliz. Para aceder ao conto, carregar na imagem com a capa do livro ou no seguinte link:
The Selkie O’ Suleskerry. Letras.
I An earthly nurse sits and sings, And aye, she sings by lily wean, “And little ken. I my bairn’s father, Far less the land where he dwells in. II For he came one night to her bed feet And a grumbly guest, I’m sure was he, Saying, “Here am I, thy bairn’s father, Although I be not comely.” III He had ta’en a purse of gold And he had placed it upon her knee Saying, “Give to me my little young son, And take thee up thy nurse’s fee.” IV “I am a man upon the land, I am a silkie on the sea, And when I’m far and far frae land, My home it is in Sule Skerrie.” V “And it shall come to pass on a summer’s day, When the sun shines bright on every stane, I’ll come and fetch my little young son, And teach him how to swim the faem.” VI “Ye shall marry a gunner good And a right fine gunner I’m sure he’ll be, And the very first shot that e’er he shoots Will kill both my young son and me.” | Silkie Col suo bambino stretto al seno Stava piangendo una fanciulla “Chi sia tuo padre non so più dire Così remoto ora lui vive” Ma a notte fonda lui ritornò Un’ombra oscura che gemeva: “Io sono il padre del tuo bambino Benché non sia il benvenuto Io sono un uomo sulla terra Io sono un Silkie nel mio mare Ma quando da te io vado lontano La mia dimora è Sule Skerrie” E poi lui prese una borsa d’oro E la depose ai suoi piedi: “Tu ora dammi il mio bambino Questa è la paga per le tue cure E quando poi verrà l’estate Col sole ardente sulle pietre Io prenderò il mio bambino E nuoteremo tra le onde “Tu troverai un buon marito Un buon fucile al suo fianco Ed io già so che al primo colpo Ucciderà mio figlio e me” |
A desigualdade estética

Apetece-me incorrer em inconveniência. A conveniência, deixo-a para quem lhe convém. O século XX destaca-se pela luta contra a discriminação. Discriminação religiosa, racial, étnica, de género, de orientação sexual… Desenvolveram-se políticas, movimentos e organizações contra a discriminação. Contra todas as discriminações? Não, existe uma que resiste: a discriminação estética. Ser belo ou feio tem efeitos na vida das pessoas. A carreira profissional é influenciada pela fisionomia. O aspecto físico faz diferença, o que é uma injustiça. Não obstante, ninguém faz nada. Não se vislumbra legislação, associação, mobilização ou resistência cívica. Para quando um pacote político pela igualdade estética, uma comissão de promoção da fealdade ou um abaixo-assinado contra o excesso de beleza nas telenovelas portuguesas. Por que hesita a ONU em decretar o Dia Internacional do Feio? Vejo, apenas, um motivo para a indiferença pública em relação à discriminação estética. Como diria A beleza parece sagrada. Não ousamos tocar-lhe.
A corrida dos mortos vivos
“Sou um morto / Ainda vivo.” (Jacques Brel. La Chanson de Van Horst. J’Arrive. 1968).
A fronteira entre a vida e a morte é tão certa quanto incerta. Há quem visite o mundo dos mortos (Dante), há quem ressuscite (Lázaro) e há quem, como os zombies e as almas penadas, viva com um pé em cada lado. Nem todos temem o triunfo da morte: decapitado e ressuscitado, Epistémão não se importava de voltar para o inferno (François Rabelais, Pantagruel). Comunicamos com a morte nos cemitérios, com recurso à feitiçaria e nas mesas girantes. As almas errantes desassossegam em busca de sossego. A morte é sinistra para quem a teme. A morte é silêncio e alvoroço, ceifeira e espantalho, fatalidade e caos. No imaginário grotesco, a morte é, simultaneamente, medonha e risonha. Esta ambivalência percorre os videojogos, os vídeos musicais, o cinema e a publicidade.
No anúncio The Rundead, da Brooks, a morte descai para o lado espantalho. A ameaça inicial é o prelúdio de um delírio burlesco. À medida que correm com as sapatilhas Brooks, os zombies sofrem uma metamorfose: os corpos revitalizam-se e a relação com os vivos melhora. Este é o primeiro anúncio da marca. Bons auspícios! Os egípcios colocavam uma diversidade de objectos nos túmulos para os acompanhar na última travessia. Quando eu morrer, quero um par de sapatilhas no caixão, de preferência Brooks.

Metamorfose de sapatilhas
Um amigo enviou-me este anúncio da Nike. Uma metamorfose. As metamorfoses estiveram na moda na publicidade há uns tempos atrás. Sapatilha por sapatilha, lembro-me, por exemplo, do Puzzle, da Feilfri (2007). Lembro-me dos anúncios e, às vezes, até do nome! Esqueço as pessoas, as reuniões, os alunos, os livros, os autores, mas não os anúncios! Alienação? Retenção seletiva? Senilidade? Estupidez?
Marca: Nike. Título: Nike Photosynthesis Pack. Junho 2015.
Marca: Feilfri. Título: Puzzle. Produção: Umeric. Direcção: Ash Bolland. Austrália, 2007.
As Mil Faces de David Bowie
David Bowie está associado a uma das imagens mais versáteis do séc. XX. A paródia do anúncio da Marvin, MechaBowie, fica aquém da realidade. Nem Klaus Nomi, nem Fred Mercury (cantou com ambos), nem Marylin Manson (vários covers de David Bowie) lhe fazem sombra.
Marca: Marvin. Título: MechaBowie. Agência: Latinworks. Direcção: Andrés Rothschild. USA, Maio 2015.
Queen & David Bowie. Under Pressure.
Cozinha mágica
A culinária está na moda. Sempre esteve. Na minha infância, o que as mulheres mais trocavam era mexericos, fotonovelas e receitas de cozinha. Entretanto, as receitas ultrapassaram as fotonovelas. Em consumo, circulação e sonho. Este anúncio da Oxo multiplica os movimentos, os contrastes, as metamorfoses e os fragmentos, tudo regado com umas colheres de absurdo. Em suma, para nosso regalo, uma ementa neobarroca. Até apetece uma mixórdia com parafusos, dados e contas de colar. Basta acrescentar Oxo Herbs, e já está! It’s the magic touch. Embora em escalada, a estetização dos alimentos não é novidade. Visite-se a secção da alimentação do Harrods, em Londres, a vetusta Fauchon, em Paris, ou a rue des Bouchers, em Bruxelas.
A estetização dos alimentos é muito antiga. Antes de Arcimboldo e Caravaggio (Figura 1) eclodiu na pintura renascentista um entusiasmo pela natureza morta com alimentos. O pintor holandês Pieter Aertseb é um bom exemplo (Figura 2). Mas esta arte remonta, pelo menos, ao Império Romano (figuras 3 e 4).
Marca: Oxo. Título: The magic touch. Agência: Jwt London. Direção: Conkerco. UK, Outubro 2014.
E o bonito se fez feio
Algo ou alguém pode ser belo ou feio e quem o apreciar ter bom ou mau gosto. A estética do feio e a estética do mau gosto podem conjugar-se: uma entidade feia é apreciada com mau gosto. Tanto o feio como o mau gosto podem suscitar atenção e atracção. O anúncio Ugly People (2004), da Volkswagen, pesca nestas águas. Crianças bonitas transformam-se em adultos feios. “What looks cute today might not look so cute tomorrow”. Não obstante o eventual mau gosto do conteúdo, o anúncio visa seduzir o consumidor e promover a compra de automóveis da marca. Coisas da publicidade!
Marca: Volkswagen. Título: Ugly People. Agência: Alma PBBDO São Paulo. Direcção: Marcello Serpa/Tales Bahu/Rodrigo de Almeida. Brasil, 2004.
O sonho das formas
Alison Saar. Bareroot. 2007.
Associados à confusão e ao encadeamento de entidades distintas, os grotescos tornaram-se célebres com a descoberta, no século XV, dos frescos das “grutas” da Domus Aurea, em Roma (ver http://tendimag.com/2012/04/15/domus-aurea-o-sonho-enterrado/). Na realidade, estas figuras híbridas existem em quase todas as culturas do mundo. Este anúncio é grotesco: materiais, fluídos e seres humanos misturam-se e sucedem-se em arabescos que “dão vida ao chocolate”.
Marca: Bailey’s. Título: Bring chocolate to life. Agência: 101 London. Direção: Johnny Hardstaff / RSA. UK, Outubro 2013.
Somente em ser mudável tem firmeza
Esta noite sonhei com as Metamorfoses de Ovídio: Io a transformar-se em novilha, Aracne em aranha, Procne e Filomena em aves, Byblis em fonte, Cila em monstros e Dafne em loureiro. La Donna è Mobile (a mulher é volúvel) é uma das árias mais populares da história da música (Verdi, Rigoletto, 1851). Três séculos antes, Camões antecipa esta ideia no soneto Somente em Ser Mudável Tem Firmeza, que termina com os seguintes versos:
«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil, que de Natura
somente em ser mudável tem firmeza».
O anúncio da 3 Suisses, de 1991, retoma o refrão: “É fascinante quanto uma mulher pode mudar quando se muda” (“c’est fascinant comme une femme peut changer quand elle se change”). O tema viria a ser adoptado, anos mais tarde, com outra estética, por Bruno Aveillan (http://tendimag.com/2013/08/10/palavras-com-imagens/).
Marca: 3 Suisses. Título: La voiture. Agência: BDDP. Direcção: Bertrand Blier. França, 1991.
Que fazer perante tamanha inconstância? Seria fácil caso Deus tivesse dotado os homens com bons descodificadores. Antes pelo contrário, em quase todos os sistemas simbólicos, cabe ao homem a linearidade focalizada. As curvas panorâmicas são, pelos vistos, apanágio feminino.
Quem abraçar? Um tronco de árvore ou um “peito feminil”? O “repouso” estável ou o “ardor” inseguro?
Luís de Camões:
Todo animal da calma repousava,
Hilário o ardor dela não sentia,
que o repouso do fogo em que ele ardia
consistia na Ninfa que buscava.Os montes parecia que abalava
o doce som das mágoas que dizia;
mas nada o duro peito comovia,
que na vontade d”outrem posto estava.Cansado já de andar pela espessura,
no tronco de uma faia, por lembrança,
escreve estas palavras de tristeza:«Nunca ponha ninguém sua esperança
em peito feminil, que de Natura
somente em ser mudável tem firmeza».
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