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Homo Acumulatus

Lidl. Allez. Outubro 2021.

Mais, mais e mais! Sempre mais. Novo, novo, novo! Ainda mais novo. Eis o impulso do homem moderno. Acumulação e mudança. As sociedades contemporâneas distinguem-se das ditas “sociedades sem história”, que resistem à transformação (ver Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, 1ª ed. 1974). O filme “Os deuses devem estar loucos” (1980) oferece uma boa ilustração: uma garrafa de coca-cola que caiu do céu representa uma ameaça para a estabilidade de uma comunidade de pigmeus; o protagonista parte em demanda do fim do mundo, para devolver a novidade, a garrafa, aos deuses; o seu povo sente-se bem tal como é! As “sociedades sem história” são também” sociedades sem moda”. Para Gilles Lipovetsky (O Império do Efémero, 1ª ed. 1987), importa não confundir moda e embelezamento. Toda a humanidade presta tributo à beleza, mas apenas uma parte adota a dinâmica da moda. O fenómeno da moda surgiu no Ocidente, na elite da sociedade de corte, por volta do séc. XII (ver Norbert Elias, A Sociedade de Corte, 1ª ed. 1969), primeiro entre os homens, acabando por se estender às mulheres e demais população. Geração após geração, estação após estação, as pessoas rejeitam o presente em nome de uma identificação distintiva e mobilizadora (ver Georg Simmel, “A Moda”, 1ª ed. 1911). Passa a ser moda o ser humano demarcar-se, mais ou menos ostensivamente, da sua inscrição e do seu passado imediatos. Ao contrário das “sociedades primitivas”, a civilização aposta na acumulação e na inovação. Sempre mais e, de preferência, novo! O anúncio Allez, dos supermercados Lidl, ilustra esta propensão ou, se se preferir, idiopatia: “Plus de coupons, plus de nouveautés, plus de simplicité; bref, c’est plus davantage / d’avantages” (“mais vales, mais novidades, mais simplicidade; em suma “ainda mais / vantagens””). Ao ver este anúncio, ocorreu-me a palavra Homo Acumulatus. Inovei? Nada se inventa, tudo se reverbera. Há 14 anos, um tal Serge Dupoux, comenta na página notre-planète.info. “ ils reveront d’une augmentation de 140/100 !! pour remplir 10 caddies par semaines ou acheter le meme 4×4 énorme ,la meme grosse piscine la meme grande maison avec des palmiers !! car l’homo consommatus a des envies bizarre il a été crée par l’homo acumulatus qui sait ce qui lui faut !” ((https://www.notre-planete.info/forums/discussion.php?id=29809&nd=40)). Foi a única menção que encontrei no Google, mas bastou para beliscar qualquer pretensão à originalidade.

Marca: Lidl. Título: Allez. Agência: Australie.GAD. Direção: Emma Luchini. França, outubro 2021.

A civilização da leveza

Luis Ricardo Falero. Faust's dream. 1880.

Luis Ricardo Falero. Faust’s dream. 1880.

Ontem decidi começar a escrever um artigo, desses que dão pontos, sobre a leveza. À semelhança daqueles que escrevi sobre o grotesco, a dobra, o fragmento e a ilusão. Há anos que debico o tema. Desde Outubro de 2011, o blogue Tendências do Imaginário dedicou, pelo menos, 31 artigos aos tópicos da leveza e da levitação (ver lista no fim do artigo). Antes de iniciar um artigo, costumo proceder ao levantamento das publicações mais recentes. Como primeira referência, calhou-me um farol do pensamento contemporâneo: Gilles Lipovetsky, De la légèreté, Grasset, 2015. Nem mais, nem menos. Eis um autor que escreve rápido: 10 livros em 13 anos. Lipovetsky Légèreté“Nous vivons une immense révolution qui agence pour la première fois une civilisation du léger.Le culte de la minceur triomphe ; les sports de glisse sont en plein essor ; le virtuel, les objets nomades, les nanomatériaux changent nos vies. La culture médiatique, l’art, le design, l’architecture expriment également le culte contemporain de la légèreté. Partout il s’agit de connecter, miniaturiser, dématérialiser. Le léger a envahi nos pratiques ordinaires et remodelé notre imaginaire : il est devenu une valeur, un idéal, un impératif majeur. Jamais nous n’avons eu autant de possibilités de vivre léger, pourtant la vie quotidienne semble de plus en plus lourde à porter. Et, ironie des choses, c’est maintenant la légèreté qui nourrit l’esprit de pesanteur. Car l’idéal nouveau s’accompagne de normes exigeantes aux effets épuisants, parfois déprimants. C’est pourquoi, de tous côtés, montent des demandes d’allègement de l’existence : détox, régime, ralentissement, relaxation, zen… Aux utopies du désir ont succédé les attentes de légèreté, celle du corps et de l’esprit, celle d’un présent moins lourd à porter. Voici venu le temps des utopies light.” (pode ler online o livro de Lipovetsky no seguinte endereço: https://play.google.com/books/reader?id=RmGjBQAAQBAJ&printsec=frontcover&output=reader&hl=pt_PT&pg=GBS.PP1.

“Este anúncio encaixa-se que nem uma luva no que tenho andado a estudar: a suspensão da gravidade como levitação e libertação, ou seja, como desprendimento  das amarras da vida e do mundo” (AG:http://tendimag.com/2011/11/12/a-insustentavel-leveza-da-compra/).

Michelangelo. La tentazione di Sant'Antonio. 1488. Tempera su tavola, Kimbell Art Museum,

Michelangelo. La tentazione di Sant’Antonio. 1488. Tempera su tavola, Kimbell Art Museum,

“Estou convencido que a leveza atrai mais as pessoas do que a liquidez, a velocidade, a imaterialidade ou a fragmentação. Consumimos comidas e bebidas leves. Deslizamos em desportos leves tais como o surf e o asa delta. Os corpos e os gestos querem-se elegantes e graciosos. A leveza anda associada à liberdade. Os pássaros não voam em gaiolas. Pelo menos à vontade. Devem, vadios, acabado o voo, vir ter connosco, decididos. Tive duas aves assim, soltas. Uma era uma pega que, tendo todo o mundo à disposição, vinha pousar no meu ombro ou na minha mão. A leveza é uma aspiração, raramente uma realidade. As nossas vidas têm conta, peso e medida. A sociedade emprega-nos e desemprega-nos, mas não nos larga. A leveza pede desgravitação e desprendimento. Normalmente, arrastamo-nos. Arrastamos os passos, arrastamos os dias, arrastamos a alma, arrastamos a vontade. Eis o nosso valor de uso (AG http://tendimag.com/2013/11/20/so-sobe-o-que-tem-peso/)”.

Two scotsmen and a witch flying on a broomstick. Etching by Paul Sandby with text by Hopkins.

Two scotsmen and a witch flying on a broomstick. Etching by Paul Sandby with text by Hopkins.

“Não há paciência para tanta levitação. Mas a publicidade insiste. Nos anúncios a bebidas gaseificadas, as borbulhas refrescam, tonificam e, sobretudo, libertam. A não ser mais pela recorrência, convém registar o ato, o modo e a missão: bebe, descola e voa! O homem contemporâneo sonha! Sonha em desprender-se. Sonha que é líquido num vaporizador. Sonha que é múltiplo, com plataformas ambulantes. Sonha que é mais arcaico do que as árvores do Paraíso. O homem sonha como nunca sonhou. Sonha com os prodígios do ecrã, com a circum-navegação, com galerias de espelhos, pós-narrativas e guerras de Titãs. Joga às escondidas na floresta da vida, líquido, plural, arcaico e sonâmbulo. Com os pés no ar!” (AG: http://tendimag.com/2015/03/03/borbulhas/).

Luís Ricardo Falero,_Luis_Ricardo. L'étoile double: ca. 1881.

Luís Ricardo Falero. L’étoile double: ca. 1881.

Ando ultrapassado porque sou lento. Leio devagar, “publico” pouco… Apraz-me comunicar, de perto ou de longe, com quem dialogo e interajo. Devia escrever mais e com outra urgência, mas, para mim, o pensamento é alambicado. Pede evaporação e condensação. Está pronto quando está pronto, se algum dia o estiver. Sou assim, atrasado. Com este ritmo, não vou chegar a tempo ao caixão. Apresentei uma comunicação na Sorbonne, no mês de Junho de 2011, sobre “La suspension de la gravité dans l’enluminure médiévale et dans la publicité actuelle” (Socialité Postmoderne, Journées du CEAQ). Entretanto, “não escrevi” sobre o tema. Não escrevi? Escrevi textos para dezenas de milhares de leitores espalhados pelo mundo. Mas, não escrevi. Neste mundo que é o meu, escrever significa submeter um paper a um júri de pressupostos pares. Como sustentam Lipovetsky, Maffesoli, Eco e outros cientistas sociais, a sociedade contemporânea tem muito de medieval. Parece uma roleta: pós-moderna, moderna, clássica, medieval… Não sou apóstolo das minhas próprias ideias. Ainda menos, candidato a vitrinas em que não encontro reflexo. Prefiro a proximidade e o interconhecimento. A edição do livro do Lipovetsky, mais do que terra queimada, oferece-se como um balsamo. Acompanhado, sinto-me menos excêntrico: “não sou o único a olhar o céu!”

Stefano di Giovanni.The Blessed Ranieri Frees the Poor from a Prison in Florence. Between 1437 and 1444. Louvre.

Stefano di Giovanni.The Blessed Ranieri Frees the Poor from a Prison in Florence. Between 1437 and 1444. Louvre.

Luis Ricardo Falero. The Butterfly. 1893.

Luis Ricardo Falero. The Butterfly. 1893.

Sinto-me ultrapassado. O mundo fugiu-me. Lembro-me de algumas revistas: Revue Française de Sociologie, Année Sociologique, Cahiers Internacionaux de Sociologie, Communications, L’Homme et la Société, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Populations, L’Homme… Revistas sem indexação, mas com identidade. Agora, os meus olhos perdem-se no meio de tanto apelo global. Naquele tempo, as revistas ainda não se pautavam por métricas de rankings e apelos internacionais. A burocracia não era a carroça da ciência.

E pronto! O Gilles Lipovetsky escreveu um livro sobre a leveza. Quanto a mim, nem um artigo submeti. Não basta plantar ideias, convém colher também as letras.

Artigos do Tendências do Imaginário sobre a leveza:

– Levitação: 01 de Outubro de 2011.

– Asas para quê: 07 de Outubro de 2011.

– Libertação: 29 de Outubro de 2011.

– A insustentável leveza da compra: 12 de Dezembro de 2011.

– A insofismável leveza do tacto: 28 de Janeiro de2012.

– Celebridades aos saltos: 09 de Fevereiro de 2012.

– Perdido em movimento: 10 de Fevereiro de 2012.

– Um par de asas: 18 de Fevereiro 2012.

– We robots: 14 de Março de 2012.

– Levitação 2: 05 de Abril de 2012.

– Descolagens: 12 de Abril de 2012.

– Voar ou levitar?: 10 de lAgosto 2012.

– Hipnose: 12 de Outubro de 2012.

– Da necessidade de voar: 16 Setembro de 2012.

– A levitação do Professor Tournesol: 28 de Outubro de 2012.

– Da banalidade da levitação: 08 de Dezembro de 2012.

– Só sobe o que tem peso: 20 de Novembro de 2013.

– Balões: 28 de Novembro de 2013.

– Voo pesado: 29 de Novembro de 2013.

– Memórias com asas: 6 de Dezembro de 2013.

– A incomensurável leveza do beijo: 12 de Fevereiro de 2014.

– Deslizar: 09 de Março de 2014.

– Flutuar naturalmente: 15 de Maio de 2014.

– O milagre da queda: 26 de Junho de 2014.

– Cerveja debaixo de água: 27 de Outubro de 2014.

– Mercúrios: 22 de Fevereiro de 2015.

– Geração ultraleve: 03 de Março de 2015.

– Borbulhas: 03 de Março de 2015.

– Baloiços: 08 de Março de 2015.

– Vertigens a baixa altitude: 02 de Abril de 2015.

– Magnetismo: 27 de Abril de 2015.