Tag Archive | esfera pública

Piropos, galanteios e tromboflebites

Quino. Hombres de Bolsillo

Quino. Hombres de Bolsillo

Cara

Proibidos os piropos? A alteração do Artigo 170 do Código Penal, uma nova pérola legislativa, acorda fantasmas de outras eras, tais como a interdição da Coca-cola; o controlo dos isqueiros; as regras de decoro balnear que condenavam o andar descalço fora da praia sob pena de cinco coroas. Zelo do Estado Novo! Zelo renovado com a intenção de proibição do arroz de cabidela, não sei se por iniciativa do governo português ou da comunidade europeia (cada vez os destrinço menos). Acresce a vetusta pragmática de D. João V (1749) que decretou a proibição das rendas no vestuário.

Somos um país de grandes legisladores. Ressalvando um Marquês de Pombal, vislumbramos minúsculo e irrisório. No código penal, consta ou não a figura da agressão verbal? Existe ou não legislação sobre o assédio sexual?

O Artigo 181.º (Injúrias) do Código Penal estipula:

1- Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.

Constitui o piropo uma agressão verbal tão específica que justifique legislação adicional?

A regulamentação do piropo lembra o artista que compõe uma espiral “à maneira” para uma coluna virtual. Importa ponderar a relevância deste tipo de pérolas. A interpretação e a aplicação da lei agradeciam.

Proibiram os piropos. E os galanteios? Como categorizar um ato verbal como um piropo? Ou como um galanteio? Ou como outra coisa qualquer? Não se trata de mera retórica. Um piropo só é um piropo quando, pelo menos, duas pessoas assim o entenderem. E as frases não saem das cordas vocais com rótulos. Dependem da definição da situação e das linhas de conduta adoptadas pelos intervenientes. Quando ele, ou ela, profere um piropo, este agrada ou ofende, estimula ou inibe. Em suma, ser ou não ser piropo depende dos interlocutores, da interacção e dos “jogos de linguagem”. A Justiça tem manifestado alguma dificuldade em lidar com os crimes de violação. Como vai abordar os piropos ou o que quer que seja? Dava jeito um Índex de piropos. Sempre achei que era o que nos faltava! Aguardo, com expectativa, a polifonia dos piropos nos tribunais. A proibição do piropo afigura-se-me relevar mais de um manifesto, por sinal, ideológico, do que de uma lei do Estado a pensar na Nação.

Alguém na esfera do poder entendeu legislar contra os piropos. São as estreitezas e os horizontes que temos. Proibir assemelha-se, no entanto, à receita de antibióticos: usar com parcimónia. O delírio suscita delírio. Por que não candidatar o piropo a património da humanidade? É tão absurdo quanto concebível, com argumentos sólidos estribados numa análise SWOT.

Para concluir este primeiro exercício de provocação, uma anedota.

No meu tempo de estudante em Braga, os artistas do piropo encostavam-se ao edifício do Turismo. Aproxima-se uma jovem elegante, andar seguro e nariz empinado.
Um jovem lança o piropo:
– Tem cuidado que não te caia a virgindade!
A visada responde de imediato:
– Se me cair a virgindade, apanha-a e mete-a no rabo, que precisas tu mais dela do que eu.

Quando este país estiver completamente depurado de violência simbólica, teremos, fatalmente, saudades dos piropos.

Coroa

Tive, como prenda natalícia, uma tromboflebite. Castiga o corpo e tolda o espírito.

Este texto devia ter começado com o Artigo 170 do Código Penal, designadamente a alteração recente avessa ao piropo:

“Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Nenhuma menção aos piropos! Adivinha-se que cabem nas “propostas de teor sexual” “importunas”. Importunas, repita-se. Nesta base, qual a razão do alarido na comunicação social? Como emergiu e se tornou viral a notícia da “proibição do piropo”? Será apenas mais uma jogada na miragem das audiências?

A teoria do two step flow, formulada por Paul Lazarsfeld, Bernard Berelson e Hazel Gaudet (The People’s Choice, New York, Columbia University Press, 1948) numa investigação dedicada a uma eleição presidencial releva o papel dos leaders locais de opinião. Entre o primeiro e último elo interpõem-se várias mediações. A influência pública é tudo menos directa e linear. Entre faróis e nevoeiros, entretecem-se diversas versões da “realidade”.

A  alteração do Artigo 170 do código penal foi, “discretamente” aprovada, no dia 05 de Agosto de 2015. Coube ao Diário de Notícias, de 28 de Dezembro de 2015, introduzi-lo na esfera pública numa notícia de intitulada “Piropos já são crime e dão pena de prisão até três anos”. O mote está dado. Seguem-se os ecos na comunicação social, a febre nas redes sociais, os esclarecimentos dos políticos e a perplexidade dos públicos. Temos faróis e tradutores. As “propostas de teor sexual” podem ser vulgarmente interpretadas como “piropos”, assim como os “contactos de natureza sexual” eram associados aos “apalpões”, inclusivamente, pelos próprios protagonistas políticos (“Piropo com teor sexual é crime e dá pena de prisão até três anos”, Esquerda.net,  29 de Dezembro de 2015). É o destino, quiçá desejado, da legislação abstracta, abrangente e vaga. Presta-se ao parecer e à interpretação. A segunda chave é a seguinte: para além da Convenção de Istambul, a proposta avançada pelo PSD foi precedida por iniciativas, de inspiração feminista, por parte da UMAR e do Bloco de Esquerda. Terceira chave, a alteração resume-se à aplicação de decisões assumidas na Convenção de Istambul. Chave gasta. Os nossos legisladores assumem-se cada vez mais como tradutores de medidas deliberadas alhures, o que engrossa um rio de responsabilidade sui generis. Quando, por acréscimo, as medidas “passam despercebidas, “varridas para debaixo do tapete”, as águas tornam-se turvas.

Multiplicam-se os faróis, os nevoeiros e as chaves, que lembram um canivete suíço: servem para abrir e para fechar, para entrar ou sair, para trazer no bolso ou no cérebro. O aditamento referente às “propostas de teor sexual” constitui um bom húmus para a excitação da esfera pública.

Mulheres e meninas

Em crónica no jornal Expresso, de 29 de Dezembro, Paula Cosme Pinto rebate estas chaves de interpretação da alteração do Artigo 170 do Código Penal. Primeiro, considera o artigo no seu conjunto. É uma perspectiva legítima. Uma entre outras. A novidade permanece, contudo, o aditamento, a nova parte do todo. Segundo, importa não confundir piropos, formulação de propostas de teor sexual e assédio sexual:

“diz o dicionário que um piropo é uma “palavra ou frase lisonjeira que se dirige a uma pessoa revelando que se acha essa pessoa fisicamente atraente; forma de galanteio”. Já no que toca ao assédio sexual, é um “conjunto de atos ou comportamentos, por parte de alguém em posição privilegiada, que ameaçam sexualmente outra pessoa”. Para quem não conseguia chegar lá pela sua própria cabeça, talvez estas definições dos dois termos ajudem a que se faça luz”. Convocar a palavra piropo é uma tradução despropositada. Terceiro, “a lei não se refere à mulher, refere-se à ‘pessoa’ (…) Refere-se explicitamente à vítima enquanto “pessoa”. Mulheres, homens, meninos, meninas. Aliás, convém que não se desvalorize o assédio sexual a que tantos homens e garotos também estão sujeitos”.

O artigo do Código Penal fala, efectivamente, em “pessoas”. Literalmente, nada a acrescentar. Convocar a relação esfíngica entre a letra e o espírito da lei seria terrorismo intelectual, no sentido atribuído por Henri Lefebvre. Mas…

Os próprios protagonistas da alteração do Artigo 170 , como a deputada Carla Rodrigues, não resistem à elipse do género masculino: o aditamento aplica-se

“em qualquer circunstância: no local de trabalho, na rua, em grupos sociais, em qualquer situação em que um agressor pratique qualquer desses atos. Acho que as mulheres e as meninas estão muito mais defendidas com esta formulação. Praticamente todas as coisas que são ditas na rua para importunar as mulheres, tudo aquilo que é ordinarice, fica assim criminalizado. Agora é preciso é que tenham consciência disso e denunciem. É preciso divulgar a existência deste novo crime” (Diário de Notícias, 28 de Dezembro de 2015).

Apesar das aparências, a questão está longe de ser inócua. É grave!

Homens e meninos

Remontando ao combate à violência doméstica, segundo a Lei nº112/2009, de 16 de Setembro, as medidas destinam-se à

“prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas (…) Para efeitos de aplicação da presente lei, considera -se: a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um dano moral, ou uma perda material, diretamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal”.

A lei relativa à violência doméstico tão pouco fala em homem ou em mulher mas apenas em vítima e em pessoa. O combate à violência doméstica foi acompanhado por uma apreciável campanha de sensibilização. Sendo a pessoa o alvo do programa, por que motivo muitos homens se sentiram, de facto, excluídos? Pressentiram que o dispositivo não lhes era dedicado. Os poucos dos muitos homens vítimas de violência doméstica que recorreram às instituições tenderam a ficar pelo primeiro contacto. Vários estudos confirmam esta tendência. Não é uma vergonha nacional? Uma não discriminação que discrimina? Neste caso, a “pessoa”, o “ser humano”, é vítima de agressão física e simbólica: pela Família, pela Sociedade e pelo Estado. São pessoas…  Na Quinta dos Animais, há pessoas que são mais pessoas do que outras.

“Das mais de 26 mil vítimas de violência doméstica em Portugal que pediram ajuda no ano passado, cerca de 15,5% são homens, segundo números oficiais da Direcção-Geral da Administração Interna, referidos nesta segunda-feira durante a apresentação de um estudo universitário sobre o tema. A psicóloga Andreia Machado, da Universidade do Minho aplicou um inquérito cujos resultados indicam que embora 70% dos inquiridos afirmem ter sido vítimas de um comportamento abusivo nos últimos 12 meses, apenas 9% deles se afirmem vítimas de violência. Ainda existe uma relutância masculina em se admitir ser vítima de violência e o preconceito social é o principal motivo.

O inquérito incidiu sobre indivíduos de sexo masculino com mais de 18 anos e com relações heterossexuais. 60% dos inquiridos admitiu ser vítima de agressões psicológicas com impacto para a sua saúde mental, mas apenas 23% procurou ajuda. Destes, 83% relatam que os profissionais das forças de segurança “nada ajudaram”. Para Andreia Machado, o estudo da violência contra os homens está no patamar em que estava o estudo da violência contra as mulheres nos anos 70. A “feminização do fenómeno e a invisibilidade de outras faces do problema” conduz a que esta seja uma violência ainda não reconhecida socialmente no nosso país. Socialmente mas não só.

A psicóloga foi uma das oradoras presentes no seminário-debate As outras faces da violência doméstica, promovido pela Associação de Apoio à Vítima (APAV). João Paiva foi uma voz activa apresentando um caso de violência doméstica, o seu. “As pessoas desatam-se a rir na nossa cara, mesmo quem está destacado na esquadra para tratar de assuntos de violência doméstica”, disse.

Para esta testemunha na primeira pessoa, quando um homem pretende apresentar queixa por violência, é quase certo que esbarra num “comportamento estranho”. Diz ser necessário lutar contra a invisibilidade e a passividade das forças de segurança e da justiça e afirma ser difícil avançar-se para formalizações de processos. A razão, no seu entender, é uma: “sou homem”. (Público, 18 de Novembro de 2013).

Discriminar ou não discriminar, eis a questão, tão antiga quanto a humanidade.  Mais próximo da modernidade é o seguinte paradoxo: discriminar sem discriminar.

Escrever com dores faz mal às letras. Escrever à pressa sobre matéria não urgente é um atentado ao pensamento.