Tu fazes parte!

Um blogue tem um público. Que público? Quem e como são os visitantes do Tendências do Imaginário? Como sintonizar um público desconhecido.
O Tendências do Imaginário funciona como um arquivo. Se quero ouvir a folia portuguesa, projectar O Desconcerto do Mundo ou transferir o artigo “Uma Vida Entre Parêntesis”, o blogue está à mão. É uma espécie de “nuvem” temática. Mas os arquivos pedem arrumação. Por exemplo, colmatar falhas, como a canção Come together do Beatles.
O Tendências do Imaginário funciona também como caderno de apontamentos, cujo alcance pode ser grande. A Morte na Arte, livro em fase de conclusão, é composto, exclusivamente, por artigos do blogue.
O Tendências do Imaginário releva de um bricolage pessoal, que combina desejo, intuição e oportunidade. As ideias andam soltas como as cabras na montanha.
Esta reflexividade de três vinténs vem a propósito da inserção da música Come Together, dos Beatles. Toda a gente conhece. Mas sente-se a falta no “arquivo”. No que respeita ao registo musical, esta ausência é uma falha.
Propenso a misturas, entendi complementar a Come Together com um anúncio afim. Um anúncio centrado no sentimento de estar em conjunto. Cismei que devia ser um anúncio português. Há muitos anúncios portugueses com ajuntamentos. Mas voltei a cismar: o anúncio deve abranger tanto a união como a separação.
O anúncio Caixinha Mágica, da NOS, cumpre os requisitos. As pessoas juntam-se, separam-se e voltam a juntar-se. Um trabalho fabuloso da agência Havas e da produtora Escritório. Mas o anúncio contém uma “surpresa”: a filmagem é em Guimarães, na Praça da Oliveira. Lembra o lema de Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: Tu fazes parte! Por sinal, o vídeo promocional da Capital Europeia da Cultura começa precisamente na Praça da Oliveira.
A mensagem, o discurso, não se desfia, não se desfaz, escava-se e revolve-se.
Fanny: Eva Fora Do Paraíso
Mulheres abraçadas enlaçadas por um demónio. Bíblia Moralizada de Nápoles. Séc. XIV. Biblioteca Nacional de França: ms-francais-9561-1. Mulheres abraçadas enlaçadas por um demónio. Bíblia Moralizada de Nápoles. Séc. XIV. Biblioteca Nacional de França: ms-francais-9561-1.
“As identidades não são necessariamente distintas. Por vezes, misturam-se umas com às outras. Por vezes podem mesmo ser partilhadas.” (Mary E. Pearson. Fox Forever. 2013). Se gostam, partilhem! Quando partilhamos somos mais.
Acarinho a ilusão de que o blogue Tendências do Imaginário persegue uma vocação universal. Sonha pecar por excesso de inclusão. Empenha-se por ser aberto e plural, numa travessia de mundos e num desconcerto de identidades. Pretende aproximar-se, dialógico e polifónico (Mikhail Bakhtin), heterocêntrico (Jean Piaget), de uma alma acolhedora. Algumas das máscaras que incorpora, num desfile de avatares, são descendentes de Eva. Namora o feminino. Atreve-se a (in)vestir-se mulher. Depois do artigo dedicado a Fiona Apple, seguem as Fanny (), uma das primeiras girl bands (all female), norte-americana de origem filipina, a alcançar no início dos anos setenta sucesso público e comercial.

É certo que esta desejada “vocação universal” não é alcançável na íntegra. Mas a realidade oferece-se paradoxal. A porfia do impossível pode revelar-se o melhor caminho para lograr, senão potencializar, o possível. Como diria Ernst Bloch (Thomas Müntzer. Teólogo da Revolução, 1ª ed. 1920), a história da humanidade está repleta de impossíveis realizados e de possíveis não realizados. Lutamos pela igualdade conscientes de que a igualdade plena é uma utopia. Esta concepção é semelhante a uma advertência atribuível à “filosofia do não”: não é por uma ideia estar errada que ela que ela está condenada a nos desviar da verdade. “Eu sou o limite das minhas ilusões perdidas” (Gaston Bachelard, Critique préliminaire du concept de frontière épistémologique.1ª ed. 1936. In Études 2, 2002). Nesta linha, Gaston Bachelard observa, a propósito da física quântica, que pouco subsiste do esquema do átomo proposto por Niels Bohr, um dos contributos mais decisivos para o desenvolvimento da teoria do átomo: “O esquema do átomo proposto por Bohr, um quarto de séculos atrás, agiu nesse sentido como uma imagem correta, mas não resta mais nada.” (A filosofia do não. 1ª ed. 1940).
Carregar na imagem seguinte para aceder ao vídeo.

As danças de Matisse
« J’ai toujours essayé de dissimuler mes efforts, j’ai toujours souhaité que mes œuvres aient la légèreté et la gaieté du printemps qui ne laisse jamais soupçonner le travail qu’il a coûté » (Matisse, Henri, 1948, Carta a Henry Clifford).
Entre dois relatório de atividades, o pessoal e o do Departamento, o olhar deixa-se atrair por outros encantos. Um quadro de Matisse é outra louça. Matisse é um caso à parte na história da pintura: expoente do fauvismo, foi um dos artistas mais influentes do século XX, sobretudo, nos Estados Unidos. Andy Warhol terá exclamado: “Gostava de ser Matisse”.
As obras que Henri Matisse dedica à dança encontram-se entre as mais marcantes. Por exemplo, La Danse de 1910 (Museu Hermitage), mas também o tríptico La Danse de Mérion, encomendado por Albert Barnes, coleccionador de arte, patente na Barnes Foundation, em Filadélfia. Matisse pintou duas versões anteriores deste tríptico que se encontram no Musée de l’Art Moderne, em Paris.

Henri Matisse. A dança. 1910. Museu Hermitage.
O que me distraiu não foram as pinturas de Matisse. Foi uma fotografia, enviada pela Adélia, com Matisse a traçar o esboço de um tríptico, em cima de um banco munido com uma cana de bambu. Quem diz que pintar é fácil não conhece Matisse: “Algumas das minhas gravuras acabei-as após centenas de desenhos” (citado em Schneider, Pierre, 1984, Matisse, Flammarion, p. 578).
Como suplemento dançante, a música Avlägsen Strandvals (1981) do acordeonista sueco Lars Hollmer, acompanhada por uma selecção de quadros de Paula Rego. Trata-se de um excerto da parte final do vídeo O Desconcerto do Mundo (2005).
Albertino Gonçalves. O Carrossel. Excerto de O Desconcerto do Mundo. 2005.
A canção da morte a passo de caranguejo

Figura 01. Igreja de São Virgílio. Pinzolo. Itália

Figura 02. O Baile da Morte na Igreja de São Virgílio. Postal ilustrado. 1903
O vídeo O Desconcerto do Mundo inicia com imagens de danças macabras acompanhadas pela canção Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte, 1977) de Angelo Branduardi, cuja letra corresponde aos ditos da dança macabra de Pinzolo (Itália, 1539), dança situada na Igreja de São Virgílio, na fachada que confina com o cemitério (ver Figura 1). No início do século XX, o cemitério estendia-se até à igreja (ver, na Figura 2, bilhete postal datado de 1903).
Pela localização, junto ao cemitério, a dança macabra de Pínzolo lembra a dança macabra do Cemitério dos Inocentes, em Paris, a primeira dança macabra de que há conhecimento: os frescos percorriam os muros interiores do cemitério, por cima dos ossários (ver Transi 3: Viver com os mortos). Segue canção de Angelo Branduardi, com tradução dos versos iniciais.
Angelo Branduardi. Ballo in fa diesis minore. Versão original: La pulce d’Acqua. 1977.
Descobrir é “coisa corrente”. “De sábios e tolos todos temos um pouco”. Intrigou-me, por exemplo, a afinidade entre alguns autores surrealistas (Salvador Dali, Giorgio de Chirico e M.C. Escher) e vários artistas do séc. XV a XVII, tais como Lorenz Stoer, François Desprez, Wenzel Jamnitzer e Giovanni Battista Braccelli (ver: Arquitectura de paisagem na geometria maneirista: Lorenz Stoer ; Criaturas pantagruélicas 1 ; Criaturas pantagruélicas 3 ; Perspectivas: Wenzel Jamnitzer e M. C. Escher ; Braccelli. À maneira surrealista ).
Estas duas “descobertas”, versos da “canção da morte” e influência do maneirismo no surrealismo, são, de facto, descobertas da pólvora. De algum modo, já se sabia!

Figura 03. Início da dança macabra de Pínzolo. Músicos e primeiros versos
Qual o interesse em descobrir o descoberto? A felicidade e o treino: descobrir é uma experiência grata e uma competência que ganha em ser cultivada. “o acaso só toca os espíritos bem preparados” (Joseph Pasteur). O episódio da letra da canção de Angelo Branduardi deve muito ao acaso, acaso que só toca, contudo, à minoria que lê os versos das danças da morte. “Preparar bem o espírito” não se resume à promoção de estudos exploratórios e à revisão da literatura”. Requer mergulho na realidade e capacidade de discernimento dos “fenómenos anómalos, relevantes e estratégicos” (Merton, Robert K., 1968 [1949], Social structure and social theory, New York, The Free Press, 158).
O risco de descobrir a pólvora tende a diminuir quando o tema da investigação é menos concorrido e mais circunscrito.
Escolhíamos imagens para o livro sobre as Festas d’Agonia (Martins, Moisés, Gonçalves, Albertino & Pires, Helena, 2000, A Romaria da Srª da Agonia, Grupo Recreativo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo), quando deparei como uma fotografia com um aeroplano. Em letras muito pequenas, enxergava-se o nome: Quo Vadis. Desde 1913, os programas das festas e os jornais locais anunciam, ano após ano, a exibição de um aeroplano. O cartaz de 1913 “representa uma figura de Zé P’reira, assentando num bombo, admirando basbaquemente, um aero plano que cruza o espaço” (Aurora do Lima, 16.07.1913). Mas foi preciso aguardar pelo ano de 1918 para ver um aeroplano a sobrevoar, durante as festas, Viana do Castelo. O aeroplano chamava-se Quo Vadis… Por mesquinhas que sejam, estas micro descobertas despertam o investigador e a investigação. Podem, ainda, contribuir para o património e a memória locais.
A micro descoberta não programada requer competência, treino e disponibilidade, tanto de tempo como de espírito. Investir em quase nada é uma aventura ousada.
Para o “livrinho” A Idade de Ouro do Postal Ilustrado em Viana do Castelo, recorri à pesquisa na Internet, designadamente páginas de leilão e blogues especializados. A determinada altura, deparo-me com um postal ilustrado, datado de 31 de Agosto de 1911, com a mensagem escrita inesperadamente incompleta. Uma curiosidade. Passei em frente. Alguns dias mais tarde, surge um postal ilustrado com o mesmo emissor e a mesma destinatária, do mesmo dia e com mensagem incompleta, ambos numerados. Coleccionador de selos e leitor de romances policiais, não resisti a prestar atenção este caso anedótico. A missão consistia em descobrir o maior número possível dos doze postais enviados (“mando daqui doze bilhetes postais para assim teres a certeza que vão todos ao destino”) por um visitante de Viana do Castelo a Magdalena Manzoni, de Torres Vedras. Consegui encontrar dez, todos na Internet (ver Galeria de imagens). Faltam o 2 e o 5. Valeu a pena? Não sei, mas ainda me sinto orgulhoso. Não deixa de ser um bom indicador da paixão pelos postais ilustrados no início do século XX.
- Postal 01 Frente. Edifício da Congregação e Hospital de Velhos. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 01 Verso. Edifício da Congregação e Hospital de Velhos. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 03 Frente.. Grupo de camponezas de Santa Martha. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 03 Verso. Grupo de camponezas de Santa Martha. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 04 Frente. Rua Junto ao Mercado Municipal.Couto Viana. 1911
- Postal 04 Verso. Rua Junto ao Mercado Municipal.Couto Viana. 1911
- Postal 06 Frente. Parque no Monte de Santa Luzia e edifício destinado a hotel. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 06 Verso. Parque no Monte de Santa Luzia e edifício destinado a hotel. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 07 Frente. Vivenda da Família Pereira da Cunha. Arcozelo. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 07 Verso. Vivenda da Família Pereira da Cunha. Arcozelo. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 08 Frente. Arco da entrado do Mosteiro de S. Francisco. Bazar Couto Viana. 1911.
- Postal 08 Verso. Arco da entrado do Mosteiro de S. Francisco. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 09 Frente. Praça da República. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 09 Verso. Praça da República. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 10 Frente. Pharol de Montedor. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 10 Verso. Pharol de Montedor. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 11 Frente. Arcos do Fincão na freguesia de Areosa. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 11 Verso. Arcos do Fincão na freguesia de Areosa. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 12 Frente.. Vapor Ella sahindo da coka. Bazar Couto Viana. 1911
- Postal 12. Vapor Ella sahindo da coka. Bazar Couto Viana. 1911
Galeria de Imagens: Postais enviados por um visitante de Viana do Castelo em 1911
Aprecio as fábulas de La Fontaine: a Lebre e a Tartaruga, o Leão e o Mosquito, a Cigarra e a Formiga, o Lobo e o Cordeiro… Por que não o Galgo e o Caranguejo?
A Passo de Caranguejo é uma obra de Umberto Eco (2007, Difel). Segundo o autor, o mundo está a retroceder: regressa à guerra quente, retoma os fundamentalismos… O caranguejo do Umberto Eco anda para trás. Aqueles que conheço tendem a andar para o lado. O galgo corre para a frente sem tirar os olhos do isco e sem sair um milímetro da pista. Na estrada, o galgo acelera nas rectas sem abrandar nas curvas rumo à meta. O caranguejo não resiste a desvios, perde-se em atalhos e demora-se em inutilidades. O caranguejo sabe o que quer, mas relativiza os objectivos. É um “flâneur” (ver Benjamin, Walter, 2012, El Paris de Baudelaire, Buenos Aires, Eterna cadencia Editora). O galgo é racional; o caranguejo, romântico. O galgo aprecia problemas e protocolos; o caranguejo, enigmas e travessias. O cúmulo do galgo é saber os resultados antes de começar a investigação. O cúmulo do caranguejo é acreditar que para ser investigador basta existir. O sociólogo Paul F. Lazarsfeld (ver a colectânea On Social Research and Its Language, The University of Chicago Press, 1993) aproxima-se do tipo ideal do galgo; Georg Simmel (ver a colectânea La tragédie de la culture, Paris, Editions Rivages, 1988), do tipo ideal do caranguejo. Galgo ou caranguejo? Já fui galgo, caranguejo e híbrido. “No estado em que as coisas chegaram”, estou em crer que ser caranguejo dá mais prazer e ser galgo mais poder. Para a frente, para trás ou para o lado, a cada um andar a seu contento. Mais do que formas de estar no ofício de sociólogo, o galgo e o caranguejo são formas de estar na vida.
A fechadura grotesca
O anúncio chinês Intelligent Lock, para a Kaadas, é um cúmulo do grotesco. Corpos despedaçados num mundo desconexo e caótico. O anúncio baralha os nossos sentidos e os nossos sentimentos. É sinistro, mas consegue pôr-nos a rir. Embora delirante, aparentemente desmiolado, manifesta-se completamente racional. É racional pelos fins visados: a promoção das fechaduras Kaadas. E é racional em relação aos meios mobilizados. O anúncio é composto por uma sucessão de enigmas: como conseguem os pais reconhecer os filhos e estes abrir a porta? Ao jeito de um romance policial, a solução está guardada para o desfecho final: as fechaduras Kaadas abrem com um toque e identificam a pessoa. Apesar do desconcerto, Intelligent Lock revela-se mais racional do que os anúncios em que não existe relação aparente entre, por um lado, a imagem, o som e a narrativa e, por outro, o produto ou o serviço. Nestes casos, a ligação, a ponte, entre o conteúdo e o produto do anúncio é impressiva, subliminar ou alegórica.
Marca: Kaadas. Título: Intelligent Lock. Agência: F5 Shanghai. China, Outubro 2018.
A passo de caranguejo. A canção da morte
Ao passar um vídeo sobre o grotesco (http://tendimag.com/2012/08/31/o-desconcerto-do-mundo/), costumo relevar, na sequência dedicada às danças da morte, a correspondência entre os versos da Dança Macabra de Pinzolo (Itália, 1539) e a letra da música, de fundo, de Angelo Branduardi: Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte; 1977).
“Sono io la morte e porto corona,
io Son di tutti voi signora e padrona
e così sono crudele, così forte sono e dura
che non mi fermeranno le tue mura.Sono io la morte e porto corona,
io son di tutti voi signora e padrona
e davanti alla mia falce il capo tu dovrai chinare
e dell ‘oscura morte al passo andare.Sei l’ospite d’onore del ballo che per te suoniamo,
posa la falce e danza tondo a tondo
il giro di una danza e poi un altro ancora
e tu del tempo non sei più signora”.
Angelo Branduardi. Ballo in Fa diesis Minore (Sono Io la Morte). La pulce d’Acqua. 1977.
Não é fácil detectar este tipo de coincidências. São saltos laterais na “linha do raciocínio”. De desvio em desvio, anda-se “a passo de caranguejo”. Recordando Marshall McLuhan, trata-se de ensinar menos por mensagem e mais por massagem.
Angelo Branduardi é um compositor e interprete folk / rock italiano. “Trovador contemporâneo”, inspira-se na música medieval e renascentista. Compõe, frequentemente, letras alheias. Consta entre os compositores e cantores mais famosos da Europa (além-Pireneus). Partilhou uma música com Teresa Salgueiro, Nelle Palludi di Venezia (2000), integrada no álbum Obrigado (2005). De Itália até Portugal, a passo de caranguejo.
Angelo Branduardi e Teresa Salgueiro, Nelle Palludi di Venezia. 2000. Teresa Salgueiro, Obrigado, 2005.
Michel Maffesoli

Michel Maffesoli e Muniz Sodré. Seminário O Trágico e o Grotesco no Mundo Contemporâneo. Tibães, 2005,
Michel Maffesoli faz hoje anos. Foi meu professor na Sorbonne em 1981 e contribuiu para a minha apetência pelo estudo do imaginário. Confesso que é uma das raras pessoas a quem invejo a qualidade da escrita e do discurso.
Seguem três ligações, algumas em jeito de prenda digital:
– Uma entrevista recente de Michel Maffesoli (11/11/2013): Narcisses. Sommes-nous la géneration la plus obsedée par ses défauts physiques de l’histoire de l’humanité?: http://www.atlantico.fr/decryptage/narcisses-sommes-generation-plus-obsedee-defauts-physiques-histoire-humanite-michel-maffesoli-895382.html
– Um vídeo, O Desconcerto do Mundo, concebido para um seminário, O trágico e o Grotesco do Mundo Contemporânio (Tibães, 2005), com a participação de Michel Maffesoli: http://tendimag.com/?s=desconcerto+do+mundo;
– As Duas Faces, Imagens de Cristo, um vídeo talhado para quem reconhece o valor e o alcance das imagens religiosas, tema que abordei parcialmente na comunicação “Le Mélange Insensé; De l’enluminure au digital”, nas jornadas Socialité Postmoderne (Sorbonne, Junho 2011), organizadas pelo Centre d’Etude sur l’Actuel et le Quotidien, dirigido por Michel Maffesoli: http://tendimag.com/?s=duas+faces.
O Louco e a Morte
Por estas bandas, está a passar um enterro de vontades, bom pretexto para este artigo.
A morte e a loucura, se não andam de braço dado, andam, frequentemente, de mãos dadas. Ao nível do imaginário, naturalmente. Numa dança macabra alemã, do séc. XVI (Figura 1), o louco não dá, contra o costume, a mão à morte. As demais figuras dão a mão a dois esqueletos, um de cada lado da fila de dança. Exceptuando o homem de armas que, em vez de dar a mão direita à morte a dá ao louco. O louco não dá qualquer mão à morte, nem a direita, nem a esquerda. É o primeiro da fila, visivelmente, a contracorrente. Como compreender este estatuto excepcional? Poderá o louco ocupar o lugar da morte? Em determinadas circunstâncias, até parecem intermutáveis. Acresce que a posição do louco observada nesta dança macabra não é um caso isolado: na Dança e Canção da Morte, publicada por John Audelay, em 1569 (Figura 2), o louco é apresentado numa situação similar: no início da fila, sem dar a mão à morte.
A figura do louco é caracterizada pela liminaridade. Marginal, nem aqui, nem além, num rodopio excêntrico, sem pouso nem sentido fixos, a nave dos loucos não tem cais onde arrimar, nem destino a cumprir. Os territórios e os caminhos baralham-se, mesmo na última travessia, a da hora da morte.
“Voltando, pois, à felicidade dos loucos, devo dizer que eles levam uma vida muito divertida e depois, sem temer nem sentir a morte, voam direitinho para os Campos Elísios, onde as suas piedosas e fadigadas almazinhas continuam a divertir-se ainda melhor do que antes” (Erasmo, Elogio da Loucura).
“Sem temer nem sentir a morte”, os loucos não têm barca nem trânsito predefinidos. Como o parvo do Auto da Barca do Inferno, peça de Gil Vicente que lembra as danças da morte.
Esta ligação entre o louco e a morte emerge em muitas imagens. O louco e a morte envolvem-se, por vezes, numa luta grotesca (Figura 3), como na letra R do Alfabeto da Dança da Morte, de Hans Holbein (1523). Escusado será dizer que só um louco ousa lutar com a morte. Noutros casos, a morte adopta a roupa e os adereços típicos dos loucos (bobos). Na Dança da Morte de Heinrich Knoblochtzer (c.1488), a morte, trajada de louco, dá a mão a um capelão (Figura 4). Esta figura da morte travestida em louco repete-se na Dança da Morte de Wilhelm Werner von Zimmern (c. 1600), com a morte a conduzir um franciscano, bem como na gravura A Mulher e a Morte de Hans Sebald Beham (1541), em que a morte, trajada como um louco, incluindo o bastão de ar, abraça uma donzela (Figura 5).
Será esta ligação entre a loucura e a morte exclusivo da fantasia medieval? Talvez não. Hugo von Hofmannsthal escreve, em 1893, a peça dramática O Louco e a Morte. Raul Brandão retoma o título numa farsa publicada em 1923: O Doido e a Morte. Eis a sinopse:
“O Governador Civil, Baltazar Moscoso, dramaturgo frustrado, tenta escrever mais uma das suas peças medíocres. O contínuo Nunes avisa-o que o Senhor Milhões o vem visitar com uma carta de recomendação do ministro. Ao ser recebido, o Senhor Milhões liga a campainha eléctrica da secretária a uma caixa que transporta consigo, comunicando que acaba de activar uma bomba, a qual rebentará daí a vinte minutos. Perante o desespero do Governador Civil que se vê abandonado por todos, inclusive a sua mulher, D. Ana, o Senhor Milhões faz a crítica demolidora das convenções sociais e a defesa de um sentido último para a Vida; o próprio Governador Civil admite ter sido a sua uma mentira. E, na iminência da explosão, chegam dois enfermeiros, que vêm buscar o Senhor Milhões, o doido. Afinal, a bomba era apenas algodão em rama e não o temido peróxido de azoto, o que leva o Governador Civil a soltar um palavrão entre a raiva e o alívio” (O Doido e a Morte, Edições Colibri).
Tal como o Auto da Barca do Inferno, O Doido e a Morte, de Raul Brandão, bebe na matriz das danças macabras. A vítima é reduzida à sua condição miserável, não pela morte, mas por um louco. A arte de desmascarar tanto está associada à morte como à loucura. É, talvez, o atributo mais temível do bobo da corte.
A modernidade encerra, no entanto, alguma particularidade. Com tanta razão, tanto espírito positivo, tanta promessa de salvação, tanto juízo, a morte descompensou. Para além de vestir a roupa do louco, a morte, ela própria, endoideceu. Encontramo-la assim, louca, nos quadros de James Ensor (Figuras 6 e 7), Otto Dix e George Grosz. A morte anda à solta, mais maluca do que nunca: zombies, Halloween, death metal, Tim Burton… Para nossa perdição no “julgamento das almas”. Conduzidos por um louco ou por um esqueleto, estamos condenados a caminhar para a morte sem nos enganar no caminho.
Notas de rodapé:
Sobre o tema do louco e da morte, aconselho a leitura do artigo de Sophie Oosterwijk, “Alas, poor Yorick”. Death, the fool, the mirror and the danse macabre”, acessível no seguinte endereço: http://www.academia.edu/665091/Alas_poor_Yorick._Death_the_fool_the_mirror_and_the_danse_macabre.
Existem dois livros notáveis sobre a história do tratamento da loucura no Ocidente: a História da Loucura, de Michel Foucault, e L’Ordre Psychiatrique, de Robert Castel.
No vídeo O Desconcerto do Mundo, os primeiros minutos são preenchidos com imagens de danças macabras, acompanhadas com uma canção sobre o Triunfo da Morte. Está acessível no seguinte endereço: http://tendimag.com/?s=desconcerto+do+mundo.
O Desconcerto do Mundo
O Desconcerto do Mundo é o meu primeiro vídeo. Seguiram-se outros, mas é deste que gosto mais. Foi apresentado no seminário internacional O Trágico e o Grotesco no Mundo Contemporâneo, no Mosteiro de Tibães, em Braga, no dia 19 de Abril de 2005. Dura 38 minutos. Este exagero é compensado pela originalidade, pela variedade e pelo encanto das imagens e dos sons. De espanto em espanto, o tempo passa. Faltam os comentários, o que é uma falha. Desconcerto do mundo. Do mundo ou dos homens? Loucura ou realismo? Não há luz sem sombras, a não ser, porventura, no vazio. Só não enxerga sombras quem apaga a luz. Resisti, até hoje, a publicar este vídeo na internet. É uma prenda de aniversário a um blogue criança. Peço a quem ousar visionar este Desconcerto do Mundo que carregue em HD no canto superior direito do ecrã. Faz diferença.