Almas danadas
Volta e meia, cruzo-me com autores maneiristas, de Agnolo Bronzino (1503-1572) a Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), passando por Francisco de Holanda (1517-1585) e Wenzel Jamnitzer (1507-1585).Calhou a vez a Marten de Vos (1532-1603), pintor de Antuérpia.
O inferno do Juízo Final (1570), de Marten de Vos, é impressionante: fogo, demónios e condenados formam uma corrente rumo à boca do inferno. Os corpos, com os seus movimentos, contorcem-se como labaredas. Trata-se de um fluxo onde não há parte sem todo. Este dinamismo lembra a queda no abismo, no inferno do Juízo Final (1467) de Hans Memling. (1430-1494).
Reencontramos as figuras fantásticas, demoníacas e grotescas na Tentação de Santo Antão (1591-1594), que lembra, por sua vez, a Tentação de Santo Antão, quer de Hieronymus Bosch (1502), quer de Mathias Grunewald (1512-1516). Todos juntos lembram o surrealismo.
Para terminar, uma nota curiosa: o “dinossauro” pintado, antes da data, na parte inferior direita da Tentação de Santo Antão, de Marten de Vos. E Pronto! Quando a vista se regala, a língua cala.
Não há dúvida nenhuma de que o Surrealismo também é um Maneirismo.
Em finais dos anos 80, visitei uma exposição sobre o Maneirismo que estava patente na Kunsthalle de Viena. Fiquei tão “vidrado” na exposição, que nem me lembrei de almoçar nem nada. Entrei às 9 e meia da manhã e saí de lá às 4 da tarde… Estavam lá quase todas as obras mais representativas, não só do Maneirismo propriamente dito, mas também dos diferentes “Maneirismos” que ao longo dos tempos se sucederam. Havia lá de tudo: desde Arcimboldo e Rubens (pelo menos “A Cabeça da Medusa”, que estava exposta, é maneirista), até Salvador Dali e Max Ernst. Aliás, a parte dedicada ao Surrealismo era quase metade da exposição toda e era de uma qualidade extraordinária. Só não estava lá nenhuma obra do Hieronymus Bosch. Disseram-me que tentaram convencer o “nosso” Museu Nacional de Arte Antiga a ceder-lhes as “Tentações de Santo Antão” para a exposição, mas a resposta foi terminantemente negativa. As “Tentações” não saíam das Janelas Verdes nem à lei da bala…
Como gostaria de ter visitado essa exposição! Não fosse a inveja um sentimento ruim… O zelo pelas obras de arte de Portugal é proverbial: quase nada sai, quase nada se digitaliza. Os lugares da arte são sagrados: requerem peregrinação. De Portugal, entretanto, saem euros e pessoas.