Archive | Junho 2013

100 000

Em vésperas de aniversário, uma prenda digital: Tendências do Imaginário ultrapassou, hoje, as 100 000 visitas. Para um pequeno blogue, é obra. Por outro lado, acentua-se a internacionalização: nos últimos 365 dias, o Brasil ocupa o primeiro lugar e países como os Estados Unidos, a França, a Itália e a Alemanha sobressaem no mapa. O que não deixa de ser surpreendente.

Tendências do Imaginário. Visitas por País, nos últimos 365 dias.

Tendências do Imaginário. Visitas por País, nos últimos 365 dias.

A internet e a Revolução

France 24. The Birds.Um pensamento sério, com expressão feliz. Este anúncio com toque surrealista, à Giorgio de Chirico, lembra Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, e, sobretudo, Le Roi et l’Oiseau, de Paul Grimault. Descoloridas e gelatinosas, as figuras do poder assemelham-se a peças de um jogo de xadrez subvertido pelas asas da internet. A agência Marcel Paris explica:

“We all know the role of social networks and Internet in spreading revolutions in Tunisia, Egypt and Libya.Social networks are now an essential source of information, as evidenced by the results obtained by France24, the French international news channel that broadcasts in three languages (French, English and Arabic).
It’s mainly the Arabic language version that broke all audience records during this period. But the channel as a whole has benefited from an increase in audience : in March 2011, france24.com experienced a peak in traffic with nearly 14 million visits and about 59 million page views.
The channel has also been very successful on Twitter thanks to its intense coverage of the Arab Spring, with a large amount of tweets dedicated to the topic, which enabled the channel to quintuple the number of followers of its Twitter account since the beginning of the year.
Based on these exceptional results, France24 and its agency Marcel have decided to highlight the link between freedom of information and freedom of expression on Internet”.

Marca: France 24. Título: The Birds. Agência: Marcel Paris. Direção: Philippe Grammaticopoulos. França, 2011.

A Ceia dos Pobres (eventualmente chocante)

The notorious Last Supper sequence in Luis Buñuel's VIRIDIANA.  

Os símbolos mais sagrados, como a hóstia, não estão ao abrigo do rebaixamento grotesco. Antes pelo contrário (http://tendimag.com/2013/06/26/sacrilicioso/). Memória puxa memória, e eis que se insinua a paródia da última ceia no filme Viridiana (1961), de Luis Buñuel. Vi Viridiana, filme de culto, palma de ouro em Cannes, há mais de trinta anos. A sequência ainda hoje impressiona.

Na ausência dos patrões, um grupo de pobres apropria-se, por um tempo, da casa senhorial. A visita descamba em orgia coletiva. A transgressão culmina no episódio em que a ceia decalca o quadro de Leonardo da Vinci. Trata-se de um cúmulo do grotesco: o tópico mais elevado da religião cristã, a Eucaristia, é, a pretexto de um simulacro de fotografia, associado ao tópico simbolicamente mais baixo do corpo humano, os órgãos genitais femininos. Este tipo de grotesco, sinistro e dissolvente, lembra a fase negra de Goya e, naturalmente, o filme surrealista Le Chien Andalou (1928), de Luis Buñuel e Salvador Dali.

Junto um excerto do filme Viridiana, suscetível de perturbar os espíritos mais sensíveis e mais devotos. Acrescento o filme Le Chien Andalou, porventura ainda mais desconcertante e mais violento. O filme Viridiana, nome de santa do século XIII, foi censurado pelo papa João XXIII, por blasfémia e indecência, e proibido em Espanha até 1977, dois anos após a morte de Franco.

Luis Buñuel. Viridiana. Episódio da ceia. Espanha, 1961.

Luis Buñuel e Salvador Dali. Le Chien Andalou. França, 1928.

Sacralicioso

AussieMite. Hostie PowerThe Simpsons. SacriliciousAussieMite é a marca de um creme de barrar, sem colorantes nem conservantes, feito com ingredientes provenientes da agricultura biológica e vegetal. Tamanha pureza permite associá-lo ao sacramento da eucaristia: barrar a hóstia com AussieMite revela-se uma tentação irresistível. É “sacrilicious”. Servido assim, com irreverência e humor, o riso, grotesco, rebaixa tudo o que aspira às alturas. O esquema não é novo. Num episódio dos Simpsons, de 1994, intitulado, precisamente, “Sacrilicious”, Homer, após várias “experiências transcendentes”, saboreia uma bolacha “sacraliciosa”. Por outro lado, quem não se recorda de anedotas deste género e com este tema? Velho de séculos, este tipo de humor remete para a cultura cómica popular propensa a rebaixar tudo quanto é símbolo de alheamento e poder.

Marca: AussieMite. Título: Ostie Power. Agência: Grown-Ups. Austrália, 2013.

The Simpsons. Sacrilicious, 1994.

Epidemia de Dança

A dança era uma actividade importante na Idade Média, omnipresente nas iluminuras e nos frescos. Até os mortos dançavam (danças macabras). As danças ditas de São Guido eram particularmente insólitas, devido ao seu carácter excessivo, histérico e epidémico. Algumas pessoas começavam a dançar de forma ininterrupta. Logo outras aderiam até chegar aos milhares. Homens, mulheres e crianças dançavam até à exaustão. Sem forças para se aguentar em pé, contorciam-se no chão. Uma testemunha da época descreve: “uma estranha doença invadiu neste tempo o povo. Muitas pessoas, por loucura, puseram-se a dançar todo o dia e toda a noite sem descanso até cair desmaiados. Alguns faleceram” (Stoeber, Auguste, Légendes d’Alsace, Ouest-France, 2010). Trata-se de uma adição (coreomania), acompanhada, frequentemente, por visões. O fenómeno podia prolongar-se por mais de um mês. Do séc. XIV ao século XVII, verificaram-se “excessos de dança” em várias cidades europeias, tais como Aix-la-Chapelle, Colónia ou Metz. Um dos casos mais célebres ocorreu em Julho de 1518 na cidade de Estrasburgo (para uma descrição, ver http://sometimes-interesting.com/2011/07/02/dancing-mania/). Pieter Brueghel O Velho, retrata este fenómeno numa gravura, que o filho, Pieter Brueghel, o Jovem, transpôs para a tela. Em suma, a originalidade não é fácil, mesmo nos novos tempos ditos pós-modernos.

Pieter Brueghel, the Elder. «The Dancing Mania. Pilgrimage of the Epileptics to the Church at Molenbeek». 1564

Pieter Brueghel, the Elder. «The Dancing Mania. Pilgrimage of the Epileptics to the Church at Molenbeek». 1564

Pieter Brueghel the Younger, The Saint John's Dancers in Molenbeeck 1592

Pieter Brueghel the Younger, The Saint John’s Dancers in Molenbeeck, Pormenor, 1592

Flores do Mal

Le Boeuf. The Feast of the Third Kind. “O mal é como uma mula: obstinado e estéril.”

(Victor Hugo)

Os maus sentimentos não nos largam. Pecamos por pensamentos, palavras, actos e omissões. As molas da maldade disparam rápido e com outro alcance. Vivemos tempos em que o mal e o bem se misturam num tango confuso. Os anjos descem ao inferno para um banquete com os demónios, incorrendo num dos sete pecados capitais: a gula (anúncio The Feast of the Third Kind).

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Marca: Le Boeuf. Título: The Feast of Third Kind. Agência: Toy Agency, Paris. Direção: Simn Ritzler. França, Junho 2013.

Somos intolerantes ao excesso de doçura ou de inocência, atirando-as às flores do purgatório (anúncio Sally). A maldade existe. Quem sustentar o contrário, para o presente ou para o futuro, pode tornar-se perigoso. Quem não teve, na última semana, um gesto, um pensamento ou um sentimento eivado de maldade merece um santuário.

Marca: Bournville. Título: Sally. Agência: Ogilvy & Mather Mumbai. Índia, Junho 2013.

O mal percorre-nos. Nada que a publicidade ignore. A publicidade publica-se, mas também se consome. E o consumo é criativo. A publicidade conhece bem os seres humanos, tanto ou mais do que os centros científicos, os meios de comunicação, as sete artes ou as tribunas políticas. Interage com o social e o humano há séculos, ininterrupta e intensivamente, com os melhores profissionais e especialistas. Estuda-os, estimula-os, influencia-os e escuta-os. Sabe que o mal vende e que a aposta na maldade compensa. Todos somos excelentes violinos com cordas desafinadas, emocionalmente funestas. As flores do mal, podemos não as semear, mas não resistimos a cheirá-las. Entre o anunciante e o consumidor, a maldade é partilhada e, cada vez mais, ritualizada. Salivamos, pavlovianamente ou não, perante o desfile da perversidade e do infortúnio (anúncio Swim).

Os vídeos que mais circulam na internet não são os mais artísticos ou os mais generosos, mas os mais pérfidos. Para ilustrar este tópico, seleccionei quatro anúncios recentes. O último anúncio (Silence the Troll), excessivo na assunção da maldade, lembra o filme de Stanley Kubrick, A Laranja Mecânica (1971), uma obra-prima do género (ver trailer da reedição do 40º aniversário).

Marca: V Energy Drink. Título: Silence the Troll. Agência: Albion London. Direção: Adam Gunser. Reino Unido, Junho 2013.

Stanley Kubrick. A Laranja Mecânica. 1971. Trailer da reedição do 40º aniversário.

Insatisfação profética

Skol. Mountain.Neste anúncio brasileiro serenamente fantástico, a travessia lembra os anos sessenta: a demanda da quimera pelo e para o prazer, patente, por exemplo, no filme La Vallée (1972), de Barbet Schroeder, com música dos Pink Floyd (Obscured by Clouds), em que um grupo de jovens parte para o desconhecido em busca de um vale encantado (ver trailer). É certo que a quimera não esperou pela “insatisfação dos filhos da abundância” (Fernando Namora, Estamos no Vento – Narrativa literário-sociológica, 1974). A quimera é uma recorrência do imaginário. Citei Fernando Namora, escritor falecido em 1989 que a memória oficial parece não parar de enterrar.

Marca: Skol. Título: Mountain. Agência: F/Nazca Saatchi&Saatchi. Direção: Jones and Tino. Brasil, Junho 2013.

La Vallée, de Barbet Schroeder, com música dos Pink Floyd. França, 1972.

O Deslumbramento dos Sentidos / Riders on the Storm

temp_Yamaha MT-09_Dark_Side_Japan_130613Pode um anúncio baralhar os sentidos? Desorientar? The Dark Side of Japan, da Yamaha, apresenta uma resposta. A imagem, imprevisível, nem sossega, nem distrai: sequências vertiginosas absorvem e enrolam como só as ondas subterrâneas sabem fazer. Excelente! Do fundo da memória, ecoa uma canção: Riders on the storm… There’s a killer on the road…

Marca: Yamaha. Título:  The Dark Side of Japan. Agência: BBDO, Milan. Direção; Luigi Pane. Itália, Junho 2013.

The Doors. Riders on the storm. LA Woman. 1971.

O Desejo e a Norma

Dente-de-leãoSe desejas o que não podes, pode o que desejas. Mas se desejas o que não deves, o caso é mais complicado. Começa por te banhar numa fonte natural próxima. Pode ser férrea, sulfurosa ou calcária. Não interessa. Pousa o coração num ninho de cuco. Lava bem a pele por fora e por dentro. Rememora a tua vida. Desfaz-te de tudo que não seja essencial. Sobrará de ti menos que um esporo de dente-de-leão. Não te esqueças do coração no ninho de cuco. Certifica-te se é capaz de voar. Deita-te numa ponte à espera que o vento te leve onde não deves. Na vida, podes ser mini, mas não sei se tens interesse em ser normal!

“Normal, c’est la norme. Normal, c’est moyen, ordinaire. Habituel. Normal, c’est une valeur sure. C’est familier, confortable et réconfortant. Normal, c’est ce qu’on connait. C’est banal.”

Poder entalado

Entre o maço e a pedra situa-se o cinzel, que, à marretada, retalha a pedra. Há quem esteja assim entre o maço e a massa. Nos anos 1930, os engenheiros franceses queixavam-se, por exemplo, de se sentir entre “a bigorna da plutocracia e o martelo do proletariado” (Luc Boltanski, Les cadres, 1982). Num registo próximo, os peixes da gravura de Bruegel (http://tendimag.com/2012/05/27/a-presenca-de-portugal-num-mapa-do-sec-xvi/) comem-se uns aos outros: os maiores devoram os mais pequenos, como no anúncio da Food Chain Friends. Para os entalados da cadeia ou da escada, comer à frente e ser comido por trás pode ser um modo de vida. Outra solução consiste em ser fraco com os fortes e forte com os fracos, postura que se dá bem com os ares da nossa terra. Tanto ou mais do que a vinha. É escusado bater palmas!

Food Chain Friends. Eating Habits.